Sabemos que os comunistas acham que não devem existir empresas privadas porque estas podem gerar lucro e este não é mais do que a mais-valia, resultante do trabalho do empregado, da qual o patrão se apropria - mas para saber isto, e concordar ou discordar, não é preciso saber o que é uma empresa, e como funciona.
Sabemos que os sociais-democratas, os que estão sobretudo no PS e no PSD, acham que a nacionalização das empresas traz desperdícios e atraso económico, coisa que está historicamente demonstrada, pelo que o melhor é não ir por esse caminho. Mas como o mercado não é perfeito, e os patrões sofrem geralmente de um egoísmo atroz e uma ignorância contumaz sobre valores que importa preservar, como o do Ambiente, faz-se mister uma economia dirigida, onde o Estado corrige as injustiças pelo expediente de tirar aos que têm para dar aos que não têm; lança ou sustenta empresas que o mercado não lançaria ou não sustentaria, retirando recursos às que o mercado lançou; e estabelece orientações obrigatórias sobre o que se pode fazer, quando se pode fazer e como se pode fazer - mas para determinar tudo isto não é preciso saber o que é uma empresa, e como funciona.
Os democratas-cristãos, os conservadores e os liberais acomodam-se entre nós, desconfortavelmente, no CDS. Os primeiros julgam que as encíclicas papais contêm programas económicos muito razoáveis, os segundos imaginam que os costumes têm muito que ver com a economia e os terceiros, todos juntos, em todo o país, é discutível se chegariam para encher o Pavilhão Rosa Mota - mas nenhuns precisam de saber, e de facto a maioria não sabe (uma maioria não tão esmagadora como as dos outros partidos, é justo dizer) o que é uma empresa, e como funciona.
Na realidade, para saber o que é uma empresa, sobretudo se for pequena ou média, exposta à concorrência internacional e sem relações com o Estado, seus departamentos de compras, suas empreitadas e suas agências de ajudas sortidas, não basta lá ter trabalhado. É preciso tê-la fundado, ou dirigir, ou estar muito perto do topo (ou ainda ter excepcionais capacidades de senso e observação, que há gente que adivinha as coisas vá lá saber-se porquê).
Porque a ouvir empresários é preciso, para aprender, saber interpretar: estes ou querem esconder prejuízos e necessitam de dar uma imagem falsa, para confortar o pessoal e os credores; ou têm sucesso e imaginam humanamente que isso se deve 100% ao mérito e 0% às circunstâncias, pelo que se consideram depositários de uma receita que impingem implacavelmente a quem tenha a paciência, ou a obrigação, de os ouvir; ou não entendem sequer as razões do progresso ou do falhanço e constroem teorias lisonjeiras umas, e disparatadas outras.
Todos eles sabem, porém, o que desconvém à empresa. E é por isso trágico que, sendo hoje pacífico que o progresso económico se faz com empresas, quem decide o mar legislativo em que estas têm que navegar tenha a cabecinha cheia de teorias académicas, estudos disparatados e preconceitos ideológicos e sociais; sem todavia perguntar nada a quem sabe, ainda que depois contrabalançasse com outros interesses legítimos.
Não vale a pena confiar nessas entidades que são as associações ditas representativas: nem são representativas, nem lá estão normalmente os melhores, nem podem estar - têm mais que fazer. E depois a chamada concertação social envenena tudo, por ser feita de cumplicidades, cedências, tráfico de influências, promiscuidades e, inevitavelmente, porque o Estado está em todo o lado, tudo condicionando e influenciando - corrupção.
Tudo isto é assim, e tudo isto é Fado: não há nem pode haver empresários no governo, menos ainda pequenos, porque as qualidades para singrar nos negócios não são as mesmas que se requerem para singrar na arte de regular a vida das sociedades, conquistando o voto dos cidadãos; nem a competência para criar um produto, uma marca, uma maneira nova de fazer as coisas, e de conquistar clientes, ou de os manter, dá quaisquer garantias de senso no governo da coisa pública, infinitamente mais complexa.
Os governantes, porém, podiam abster-se de estragar, desde logo e recorrendo ao expediente de estar silentes e quedos, poupando na asneira - um governante que não faça absolutamente nada, nem deixe fazer os seus subordinados, a não ser revogar um diploma dia sim, dia não, e fechar um serviço por semestre, seria imensamente original e benéfico.
Mas não: cada novo orçamento é um terror de medidas que complicam a vida das empresas. E não por causa de os impostos serem cada vez mais altos, enquanto o Estado não emagreceu, nem por sombras, o que devia. Isso a gente já sabe - a oportunidade para cortar na despesa finou-se há muito, ainda antes de o ministro Gaspar ter fugido da sua própria impotência e inépcia. E há muito também que os impostos sobem na medida da necessidade de tender para o equilíbrio orçamental, com umas medidinhas para troicano ver que o desaparecido Álvaro Santos Pereira, num livro prodigioso de sinceridade ingénua, qualificou, no seu pobre conjunto, como "o maior programa de reformas estruturais da história recente do país".
Querem, precisam de aumentar os impostos? Aumentem, porra. Mas sem essa vigarice dos impostos verdes, encabeçada por um ministro patético de uma pasta que nem sequer devia existir; sem essas comissões, e reformazinhas, do IRC e do IRS (um chorrilho de tretas para estabelecer uma inenarrável confusão), sem taxas e taxinhas, e coimas, e as mil maneiras de pôr o cidadão a pagar cada vez mais, enquanto se lhe diz que paga cada vez menos.
E sobretudo, ó sobretudo, tenham maneiras: Quando, como aqui se conta, o Estado se comporta como um patife; e quando, como me sucedeu hoje, tive um escritório inteiro a fazer formação para trabalhar com um programa informático "certificado" (que custou uma pipa), porque o anterior foi descontinuado, sem nenhum interesse ou vantagem da firma, porque estão a diminuir as empresas de software com estrutura para acompanhar as mudanças legislativas, isto enquanto os clientes, e o verdadeiro trabalho, esperam:
Ler que um governante, directamente responsável por este estado de coisas, declarou que "a estratégia para alcançar esse valor [1.500 milhões de Euros] passará antes pelo agravamento das penalizações por incumprimentos de deveres fiscais, com multas que podem atingir vários milhares de euros por contribuinte", faz ranger os dentes.
A opinião pública, enxofrada por uma opinião publicada que veicula a ideia esquerdista de que as empresas são antros do crime, liderados por ladrões, acolhe qualquer medida que se lhe apresente como servindo o nobre propósito de combater a evasão fiscal; e no processo não se dá conta de que esse combate não é legítimo desde que implique diminuição de garantias e multiplicação de obrigações declarativas e controles demenciais, porque faz recair o custo da fiscalização sobre quem cumpre, persegue quem não tem culpas, facilita abusos de funcionários com uma tradição de impunidade, cria custos desproporcionais à dimensão das empresas, e tudo isso tem consequências na vida, nos resultados e na sobrevivência delas.
A opinião pública não sabe isto; os senhores jornalistas também não; os senhores comentadores são, na sua maior parte, académicos a cavalo no seu saber de inexperiência feito, gestores de mesa de café ou gente que tem ideias imaginativas sobre a reforma do capitalismo e as verdadeiras razões do relativo atraso do nosso país, que incluem a famosa falta de formação dos nossos empresários. E todos concordam em que os controlos não são ainda suficientes.
Um governante, porém, deveria saber um pouco mais. E sempre, mas sempre, deveria ter presente que o Estado deve ao menos parecer uma pessoa de bem: as coimas são uma forma de reprimir a prática de ilícitos, não são uma forma de aumentar receitas. Porque, com perdão da comparação, nesta ordem de ideias chegaremos a pôr os prisioneiros a executarem trabalhos forçados, guardando o Estado os proveitos - porque é necessária mais receita.
"O diploma vem resolver o problema de quem vendeu o carro mas o comprador não efectuou o registo e, por isso, continuava a ser o legal proprietário, recebendo notificações de multas ou de impostos (Imposto Único de Circulação - IUC) para pagar".
Nem a notícia nem o diploma dizem nada sobre os milhares de cidadãos - "cidadãos" é o termo eufemisticamente consagrado para designar as rezes que são imoladas no altar do Estado - que pagaram as multas ou o maldito imposto que não eram devidos. E nem se percebe bem por que razão o Estado se dá ao trabalho de corrigir um torto - de todas as maneiras, incluindo penhoras, alguém pagava.
Não dizem nada sobre isso, nem um pedidozinho de desculpas pela legislação celerada que esteve em vigor anos, nada.
Ah, mas se a coisa vem tarde não se pode dizer que veio com falta de solenidade:
"Foram ouvidos o Conselho Superior da Magistratura, o Conselho Superior do Ministério Público, a Ordem dos Advogados, a Câmara dos Solicitadores, a Associação Sindical dos Conservadores dos Registos, a Comissão Nacional de Protecção de Dados, a Associação Portuguesa de Bancos, a Associação Automóvel de Portugal, a Associação Portuguesa de Leasing, Factoring e Renting e a Associação de Instituições de Crédito Especializado".
E "foi promovida a audição do Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais, da Associação Sindical dos Juízes Portugueses, do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, do Conselho dos Oficiais de Justiça, da Associação dos Oficiais de Justiça, do Sindicato dos Oficiais de Justiça, do Sindicato dos Funcionários Judiciais, da Ordem dos Notários, do Sindicato dos Trabalhadores dos Registos e do Notariado, da Associação Sindical dos Oficiais dos Registos e Notariado e do Movimento Justiça e Democracia — Associação Cívica de Juízes Portugueses".
E temos logo aqui um primeiro problema, pelo descaso a que foi votada a Banda de Fermentelos, que também deveria ter sido ouvida para o efeito de se saber se estaria disponível para sublinhar, com a Abertura 1812, a entrada em vigor desta legislação revolucionária, e a Associação Nacional dos Comerciantes de Veículos Semi-Novos, por razões evidentes.
Neste pormenor não estiveram bem o Senhor Primeiro-Ministro, nem a Senhora Ministra de Estado e das Finanças, nem a Senhora Ministra da Justiça, que assinam o diploma, nem o Senhor Presidente da República, que o promulgou. Quem sabe se a Senhora Ministra da Administração Interna, que incompreensivelmente não assinou (afinal as coimazinhas irão ser aplicadas pelas polícias que dela dependem, não é verdade?) teria deixado passar esta falha, com o seu olho coimbrão e catedrático.
E pronto, agora só faltam os protocolozinhos, porquanto:
Artigo 11.º
Protocolos
1 — As condições de transmissão da informação sobre o pedido de apreensão efetuado nos termos do presente decreto-lei são definidas por protocolo a celebrar entre o Instituto dos Registos e do Notariado, I. P. (IRN, I. P.), e as autoridades fiscalizadoras do trânsito.
2 — Por protocolo a celebrar entre o IRN, I. P., e o IMT, I. P., são definidas as condições de transmissão da informação prevista no presente decreto -lei.
3 — Os protocolos a celebrar ao abrigo dos números anteriores estão sujeitos a parecer prévio da Comissão Nacional de Proteção de Dados.
Mas estes protocolos não impedem a entrada em vigor do diploma, já para a semana que vem. E os emolumentos devidos são baratos: vão de 75 a 95 €, com desconto se os interessados quiserem enlouquecer tentando fazer os seus registos on-line.
É excessivamente barato. Razão por que, peguilhento como sou, encontro outro defeito nesta legislação: não se deveriam prever desde já os aumentos, por mor de não voltar a incomodar os habitantes do Forum da Burocracia, uma pequena cidade cujos habitantes se distinguem por ser sustentados pelo resto do País, não ganharem mal e acharem normal levar tantos anos para resolver um problema que eles próprios criaram?
Num casal só ele é que ganha porque a mulher é doméstica e não tem fontes de rendimento. O legislador entende que o rendimento, para efeitos de cálculo fiscal, é a dividir por dois.
Se porém o casal tiver um filho, ou dois, ou três, Costa entende que o rendimento deve continuar a dividir-se por dois, sem qualquer majoração, porque "uma criança de uma família mais abastada permite deduzir mais do que uma criança de uma família menos abastada".
Percebo o argumento. Porém, pergunto: E a gaja? Não deveríamos, no caso de casais abastados sem filhos, estabelecer que o rendimento se deveria dividir apenas por 1,7, ou 1,4 ou 1,1, à medida que o rendimento aumente, para continuar a garantir a sagrada progressividade do imposto e assegurarmo-nos que a dondoca não anda a espatifar em toilettes o dinheiro que roubou aos impostos?
Para mim, o dinheiro que o Estado deixa no bolso das pessoas não pode, por definição, ser roubado, por não ter sido ganho, nem ser propriedade, do próprio Estado. Mas isso acho eu, que não sou comunista, nem socialista ou ladrão, com perdão da redundância.
O edil Costa, ou o esfuziante Galamba e a agremiação de demagogos que quer ganhar as eleições prometendo leite e mel, acha outra coisa - um direito deles. Mas conviria que, mesmo partindo de pressupostos errados, houvesse coerência: os filhos só contam para efeito de se poder deduzir certas despesas com eles? Pois então a mãezinha deles não tem nada que ter um tratamento privilegiado.
Um marmelo recebe uma boa maquia de herança mas é prudente, senão avaro: em vez de escaqueirar o bodo, deposita-o da forma mais conservadora possível - a prazo. Deixemos de lado a teoria segundo a qual o negócio bancário está exposto à concorrência como outro qualquer (não está), que deve ser deixado falir como outro qualquer (não deve), e que o facto de o depósito não o ser realmente porque o banco, em vez de guardar o dinheiro, vai emprestá-lo (o que significa que vai arriscar o dinheiro do depositante - verdade agravada pelo facto de os empréstimos concedidos pelos bancos excederem o total dos depósitos) coloca em risco o pecúlio.
Deixemos, então, isto de lado, e partamos do princípio que os bancos são geridos por gente competente (não são), que as entidades de supervisão sabem o que andam a fazer (não sabem) e que os poderes do dia defendem o que entendem por interesse público sem consideração pelo que diz a Oposição e o que acredita a opinião pública (não acontece, que há eleições e modas de pensamento).
No fim do período acordado, o avarento recebe um prémio; e se o prémio, descontado o imposto predatório, for maior do que a inflação, ficou mais rico.
Este sacana, que nem um jantar paga aos amigos, tem utilidade: sem poupança não há quem tenha recursos para investir ou emprestar para investir; e o dinheirinho dele alguém o fará frutificar.
Imaginemos porém que o sortudo é ambicioso e, pior, tem uma ideia para um negócio. Mais: como ouve falar muito de bens transaccionáveis quer fazer uma fábrica virada para a exportação e o caneco.
Pobre moço, que tem a burra nas couves e não sabe. De sujeito de direitos passa a destinatário de obrigações: as evidentes, como pagar a fornecedores e pessoal, e as inesperadas, como ter um sócio compulsivo, lambão, mentiroso, desonesto e poderoso - tão poderoso que o pode mandar prender no caso de não cumprir as suas "obrigações".
Esse sócio vai dizer que, do que a empresa ganhar, 23% são dele, que não investiu, nem arriscou, a ponta de um corno.
Mais: Para calcular os 23% não vai ver a diferença entre o que foi pago e o que foi recebido, vai decidir, dos custos, quais são os elegíveis para assim serem considerados. Por exemplo, do investimento em máquinas, mesmo que tenham sido integralmente pagas, considera apenas um quinto no primeiro ano; certas despesas, por exemplo almoçar com um cliente ou fornecedor, são castigadas com impostos extra (a dobrar se a empresa tiver prejuízos, um detalhe sádico e celerado); o IVA, que a doutrina diz ser um imposto neutro, é devido desde que se venda, quer o cliente tenha pago quer não, e não é sequer dedutível numa lista de despesas perfeitamente legítimas e necessárias; e o regime fiscal é uma floresta instável de normas impenetráveis, todas baseadas no princípio de que o empresário é, salvo prova em contrário, um ladrão, enquanto a Administração Fiscal se comporta como um bando de salteadores inimputáveis, com geral aplauso.
Feitas então as contas à moda do Estado patife, e mantida a opinião pública na ideia absurda de que os odiados lucros sempre realmente existem, e que portanto uma empresa ter que se endividar para pagar impostos sobre lucros é uma contradição nos termos, o sócio Estado cobra o seu estipêndio, após o que o nosso herdeiro, se sobrar alguma coisa e dela se quiser apropriar, tem direito a pagar novamente imposto - 28%, que dividendos são uma fonte de proveitos notoriamente suspeita.
O imposto sobre lucros é cobrado em toda a parte, nuns sítios mais, noutros menos, salvo alguns poucos paraísos fiscais. E como a qualquer burocrata faz impressão o desalinhamento e a competição a UE quer aproveitar o escândalo luxemburguês para pôr toda a gente a pagar o mesmo - há que cavalgar a onda da indignação para fazer passar legislação que de outro modo não passaria.
A menos que a Irlanda, que com a taxa de 12,5% é um país fiscalmente competitivo na atracção de investimento, vete; ou que, afinal, a taxa uniforme a que se venha a chegar seja inferior à nossa (fazem favor de ver a taxa alemã, para ver se há alguma hipótese de isso acontecer): não temos nada a ganhar.
Espera: e se, além da taxa, se discutir também o regime? Isto é, os pagamentos por conta, as colectas mínimas, as isenções, o POC, as deduções, as amortizações, os agravamentos, o funcionamento dos tribunais, o tratamento das reclamações, o diabo a quatro - talvez surgisse alguma coisa menos má. Não vai acontecer, claro, que daquela lura nunca saiu coelho que se visse.
Hãã, e aqueles vigários no Luxemburgo (dos quais, infelizmente, não faço parte)? Estou em condições de sossegar, relativamente, os indignados - o montante da elisão fiscal não é igual ao montante do dano para os Estados. O que não foi pago em impostos só pode ter tido três destinos: i) Consumo: No mínimo, quem consumiu pagou IVA, cuja taxa não costuma andar longe da do IRC, e ser até superior se os consumos forem de luxo, como será típico de argentários fássistas; ii) Investimento: Tipicamente, o investimento privado é mais prudente do que o público. Logo, não é impossível supor que o erário público venha a ganhar no futuro com investimentos privados; iii) Aforro: Empresas sólidas são de interesse público, para além de a solidez em si propiciar aumentos de lucros futuros.
Que fique claro: se acreditasse que se todas as empresas pagassem impostos todas pagariam menos, estaria aqui a torcer para se pôr cobro a estes paraísos. Mas não: tal como com as pessoas, se os Estados cobrarem mais gastam mais, ponto.
É conhecido o esforço, geralmente gabado, e coroado de êxito, que este governo tem feito, na esteira dos abusos que o anterior inaugurou, para combater a evasão fiscal. Este esforço tem consistido em, partindo do princípio de que todos os cidadãos são evasores, criar as condições para que a fraude seja impossível, através do cruzamento de informações, da instalação de um olho do big brother nas empresas, a expensas destas; na inversão sistemática do ónus da prova; no incentivo ao comportamento arrogante e predatório dos agentes da Administração (do que é exemplo, entre muitos, a prática de notificar os contribuintes para pagar impostos já pagos, salvo se puderem exibir os competentes recibos); na arregimentação dos cidadãos, para já sob o isco de prémios, e a breve trecho sob coacção, para a tarefa de fiscalização; na indiferença sobre as deficiências de funcionamento dos tribunais fiscais, aos quais mesmo assim o recurso está na prática vedado se o cidadão ou a empresa não tiverem recursos ou crédito na banca; na interpretação capciosa ou errónea das leis, traduzida em circulares que, tendo apenas uma eficácia interna, para os serviços, acabam por configurar, pelas obrigações que criam ao contribuinte, um poder legislativo paralelo... et j'en passe.
O pano de fundo para a generalizada aprovação a esta tendência e a este estado de coisas é o descaso sobre as consequências que pode ter no futuro tanta concentração de informação, sobre a vida dos cidadãos e das empresas, nas mesmas mãos; a convicção, que os governos com sucesso propagandeiam, mas que os factos entre nós nunca demonstraram nem demonstrarão, de que se todos pagarem o que devem todos pagarão menos (se todos pagarem o que devem o Estado tem mais recursos para gastar, e gasta - o único verdadeiro incentivo que tem existido para o corte nas despesas é a necessidade, mas apenas na medida imposta pelos credores, e nem isso); a satisfação perversa da maioria dos cidadãos, que não pagam IRS, em saberem que quem tem mais do que eles é apertado; a ideia, na qual a maioria sociológica de esquerda, e bastas quantidades de idiotas úteis soi-disant na direita, acredita, de que as empresas são fonte inesgotável de receita e a actividade empresarial precisa de ser severamente vigiada; e a convicção de que os empresários não sabem investir (ou, quando sabem, fazem-no com intuitos egoístas que de modo nenhum beneficiam a colectividade) mas o Estado sim.
O preço deste sucesso de Pirro mede-se em falências, em alívio da pressão para a reforma do Estado, e em distorções do funcionamento da economia. Dou um exemplo actual, porque tropecei nele:
Imaginemos uma pequena casa de software que tem um programa de gestão (facturação, salários, IVA, contas-correntes, stocks, etc.) e uma pequena carteira de clientes que utilizam o programa, que em devido tempo adquiriram, pagando uma avença para a manutenção. Esta consiste no essencial em actualizar o programa sempre que o Estado altera alguma coisa - taxas, regimes, classificações, the works. A geringonça tem que estar certificada pela Fazenda, uma invenção do saudoso ministro Teixeira (Portaria nº 363/2010, de 23 de Junho) que os sucessores conservaram com gosto e entusiasmo, para acabar de vez com a ideia absurda de que a contabilidade é uma ferramenta de apoio à gestão, antes de ser um instrumento de saque fiscal; e uma forma de limitar a concorrência e a inovação no sector da criação de software de gestão.
Pois a nova área de negócios consiste nisto: vender a carteira de clientes a uma casa maior que possa integrar os dados históricos do programa antigo num novo, para utilização do qual será necessário adquirir uma nova licença, pagar mais pela "manutenção", fazer nova formação, etc.
Os clientes, claro, não são obrigados a concordar: podem escolher outra casa, outro software, pagando ainda mais. Não podem é continuar com o velho programa, que servia perfeitamente, contratando os serviços de um habilidoso que o conheça.
Então e a firma velha, a tal que "descontinuou", fecha ou dissolve-se na nova? Não, não é preciso: fica a dar assistência ao novo programa. Bem visto, não é? E, se a moda pega, de dois em dois ou três em três anos, tem que se comprar uma licença nova - basta o fornecedor dizer: ai agora não, o nosso programa certificado já nem o podemos ver, a gente está a trabalhar muito e ganhar pouco, convém-nos mais ganhar muito e trabalhar pouco.
Não se pode parar o progresso - da asneira.
Daqui a dias o Orçamento será aprovado. O PCP dirá, com indignação, que são os mesmos de sempre a pagar, e que prossegue a senda dos ataques aos direitos dos trabalhadores e da destruição do Estado Social e do País. Já anunciou aliás, desarmando as dúvidas que nunca ninguém teve, que votará contra.
O PS queixar-se-á dos aumentos dos impostos, das reduções dos benefícios, do aumento da dívida pública e da continuação da austeridade. E já anunciou, desarmando as dúvidas que nunca ninguém teve, que votará contra.
Os Verdes não existem senão para aumentar o tempo de antena do PCP, e o BE dirá o mesmo que dizem os primos, como sempre, com mais ou menos arrebiques. Se já anunciou como votaria ignoro, mas ninguém ignora como votará.
A maioria votará a favor. Não pode fazer outra coisa, desde logo porque o documento já terá o visto prévio de aprovação de Bruxelas, onde reside, não direi a casa da Democracia - essa continua a fingir-se que é em S. Bento -, mas a sede verdadeira do Poder Legislativo. E, se tiver juízo, do que é lícito duvidar, fá-lo-á com melancolia e desgosto.
Melancolia porque na votação do Orçamento para 2016 já lá não estarão muitos dos que obedientemente votarão agora; e desgosto porque este Orçamento é um desastre, representando o último capítulo de uma governação falhada.
Há alguma medida séria e profunda de reforma do Estado, isto é, extinção de serviços públicos, revogação de legislação que atrapalha e onera a actividade económica, simplificação de procedimentos? Não.
Se, do lado da despesa, não há nada, salvo uns aumentos mal explicados aqui e ali, porquê a desonestidade intelectual das medidinhas do lado da receita para induzir as pessoas a pensarem que há alguma redução que valha a pena, ao mesmo tempo que se aumentam os impostos sobre combustíveis, com a descarada (não menos descarada por haver quem acredite nestas caraminholas verdes) desculpa da melhoria do ambiente?
Não falo do cenário previsto de crescimento. Sobre isso sei tanto como as pessoas que o estabeleceram em 1,5%, e tanto como as pessoas que acham que não se chegará lá, isto é, nada.
Nem falo da decantada redução do IRC para 21%, senão para perguntar se alguém acredita que a redução atrairá algum investimento estrangeiro, ou incentivará o nacional; se alguma empresa que esteja mal ficará melhor; e se as poupanças nas empresas que têm lucros significativos, positiva embora, justifica o trombeteamento da medida, sabendo-se, como se sabe, que ela será revertida logo que o dr. Costa comece a tomar medidas para o quarto resgate.
Mas, sendo tudo o mais incerto, os aumentos de impostos ficarão. E ficará também a celerada redução dos direitos dos contribuintes, entretanto agravada com mais este escândalo.
Tudo vale a pena se a alma não é pequena, disse o poeta. Mas a alma era pequena em 2011; e os tomates também, digo eu. Por isso a reforma não se fez, conforme confessou o malogrado Vítor Gaspar pouco depois de dar à sola. Agora é tarde, como o Orçamento confirma.
Mas mesmo tarde há limites para a asneira. E mais valia vivermos em duodécimos, ou copiar o Orçamento actual, com as adaptações inevitáveis, do que aproveitar a 25ª hora para reforçar o totalitarismo fiscal.
A proposta do Governo, que o Parlamento deveria neste passo, mas não vai, chumbar, reforça os poderes de uma administração fiscal intrusiva, arrogante e predatória: Mesmo agora, qual é a sanção, na prática, para o funcionário ou serviço que não responde, não presta informações ou dá informações deficientes?
Nenhuma.
Quais são as sanções para os altos dirigentes que emitem instruções que representam um entendimento enviesado da Lei, e uma compreensão errónea dos princípios que devem nortear as relações entre os cidadãos e a máquina do Estado que os deveria servir?
Nenhumas.
E a legislação ignóbil e celerada que obriga a que em certos casos seja necessário apresentar garantias, bancária ou outras, para exercer o elementar direito de reagir contra uma liquidação abusiva, o que inibe muitos de se defenderem de abusos e atropelos - foi revista?
Não. Como não o foi a floresta de normas, regulamentos, práticas, alterações, mudanças, ziguezagues, que são o dia-a-dia de uma administração que vê em cada empresário um ladrão, e em cada cidadão um mentiroso, salvo se colaborar activamente na missão gloriosa de se transformar em fiscal, voluntariamente coagido, em nome do dever cívico do combate à evasão fiscal - se todos pagarmos o que é devido pagaremos todos menos, não é verdade?
Não, não é verdade: se todos pagarmos mais, o Estado gasta mais, ponto; e ninguém tem o dever de se transformar em polícia para servir o Estado, salvo em estados policiais.
Pois doravante o funcionário que se sinta ofendido, com razão ou sem ela (e será quase sempre sem ela, que se queres conhecer o vilão põe-lhe uma vara na mão), por o cidadão reagir mal a despautérios, pode originar um processo-crime, no qual o cidadão terá que se defender. O mesmo cidadão pode ainda cometer o crime de "desobediência a uma ordem dos funcionários do Fisco" (!). Mas isto, que é demais, não chega: o sindicato acha ainda que o funcionário deve ser, como os juízes, irresponsável no exercício das suas funções.
Só que os juízes são órgãos de soberania; e os funcionários apenas de soberba. Mas isto o sindicato não entende; e o legislador também não.
Não sei, realmente não sei, por que razão, não podendo haver reduções da receita fiscal enquanto não se reformar o Estado (isto é, enquanto não se diminuir a sua presença na economia e na vida das pessoas, revogando legislação e extinguindo serviços) há esta febre das comissões para a reforma dos impostos. Que me lembre, já houve recentemente o relatório Lobo Xavier para a reforma do IRC e o de um comité de lunáticos para as bicicletas e os buracos, do ozono e do senso.
Chegou agora a vez do IRS, que evidentemente não podia ser deixado em paz. Graças a Deus não se vislumbra no horizonte uma comissão para a reforma do IVA, decerto porque, a seguir às eleições, a respectiva taxa máxima irá sofrer um acerto para cima, possivelmente embrulhado numa ou outra redução de taxa para bens de primeira necessidade, que a vaselina tem um efeito altamente benéfico em situações de aperto.
O senhor presidente da Comissão deu uma entrevista e disse coisas inteligíveis e defensáveis, numa certa perspectiva das coisas, a saber que não é previsível uma diminuição da carga fiscal - o que sugere é uma redistribuição do imposto ("aqui o que se propõe não é baixar a carga fiscal do imposto, mas redistribuir essa carga..."), que há aqui uma redistribuição, grosso modo dos casais sem filhos, ou com filhos criados, para os casais sem filhos ("no fundo, é a tal ideia de redistribuição: o imposto fica mais progressivo") e que há uma enorme simplificação de processos, nomeadamente por efeito das deduções fixas e não documentadas em saúde e educação ("todos ganhamos na medida em que o imposto seja mais simples, porque todos temos menos trabalho e todos temos de pagar menos máquina de administração fiscal").
Trocando por miúdos, o interesse da colectividade em que haja mais natalidade é assegurado (se fosse, saber se esta medida contribui significativamente para esse efeito é decerto muito discutível) não pela colectividade mas pela parte dela que não tem filhos ou já os criou, e que já paga proporcionalmente mais; a velha tradição das despesas com saúde e educação pagas sem factura regressará em força; e a simplificação só será grande se a Administração Fiscal, uma conhecida quadrilha de ladrões, não aproveitar para aldrabar meio mundo.
Vale a pena? Acho que não. E até ousaria recomendar que, enquanto não se puderem baixar impostos, não se nomeassem mais comissões para coisa alguma, nem sequer para a reforma do Estado. É que quem faz, faz; e quem nomeia comissões não.
Confesso: escrevo todos os meus posts num portátil que pertence à firma onde trabalho. Mais: levo-o para casa todos os dias e frequento através dele a blogosfera e sites nem sempre recomendáveis. Vou mesmo mais longe: às vezes ouço música na internet, e direitos de autor ou impostos - nicles, salvo o que debita o fornecedor do acesso, que todavia é sempre a mesma importância, quer vá consultar a Constituição, para me inteirar dos meus direitos, legislação avulsa, para ficar ao corrente das minhas obrigações, ou jornais e revistas, para conhecer a vida dos famosos e as perspectivas da Selecção Nacional.
Sucede que o IVA do portátil foi suportado pela empresa, ao contrário do que sucede a outros cidadãos.
Isto é um escândalo: nenhuma actividade deve estar isenta de imposto e fiscalização, salvo o pastoreio de cabras e mesmo esse apenas enquanto não se venderem os cabritos ou se tiver a ideia peregrina, e revoltante para a ASAE, de fabricar queijos.
Fiquei hoje a saber que a fotografia dos radares não serve apenas, como ingenuamente supunha, para detectar excessos de velocidade (excessos legais, entenda-se - um engenheiro ignoto pôs uma placa, a olho, porque naquele dia lhe pareceu que a curva era perigosa, e a partir daí, quer chova quer faça sol, quer se conduza um Panda ou um Ferrari, fica estabelecido que a placa tem um valor bíblico).
Nada disso: agora o cidadão pacato vai à velocidade permitida, fumando o seu cigarro pensativo, e a brigada manda-o parar e imediatamente levanta o auto. Infracção: esqueceu-se de ir à inspecção periódica obrigatória e o computador do polícia, zás - se te esqueceres do dia de anos da consorte o Estado, para já, ignora o facto, mas circular sem um mecânico falhado declarar que está tudo bem isso é que não, o computador está atento. E está atento também ao selo do imposto de circulação, ou lá o que é, uma roubalheira que tem vindo sub-repticiamente a crescer - por um chaço com mais de dezasseis anos paguei hoje, sem exceder o prazo, para cima de 250 Euros.
O preço das desatenções é a doer, que multa por multa o legislador tem vindo a entender que o terrorismo fiscal incute nos espíritos um são temor da Lei e da autoridade e seus agentes.
É neste quadro que, à boleia do argumento pueril de que, se todos pagarmos o que está prescrito, todos pagaremos menos - o que é desmentido pela história e pela experiência - que vamos lentamente deixando criar um estado policial: já hoje é possível fechar uma pequena empresa ou estabelecimento se alguém com competência fiscalizadora se lembrar de embirrar com o proprietário, tal é a quantidade de normativos obscuros que é necessário respeitar; já hoje é possível à autoridade saber onde se esteve, e quando, e com quem, e quanto se gastou, e em quê; e atazanar um cidadão que não tenha recursos para ir a tribunal, ou que tenha mas estime ser esse um incómodo ainda maior do que suportar um abuso da Administração; e já hoje é não apenas possível mas frequente aceitar que o Estado se comporte como uma quadrilha mafiosa, não cumprindo prazos de reembolso e exigindo rotineiramente pagamentos em duplicado, para os incautos que não guardaram recibo, e uma carga de trabalhos, para os que guardaram.
If it moves, tax it. If it keeps moving, regulate it. And if it stops moving, subsidize it, disse o outro. Disse bem, e ainda se esqueceu do perigo de depositar tanto poder na mão de burocratas inimputáveis - mesmo que eleitos.
Li ontem esta notícia, sobre Alcides Santos, um gestor de sistemas informáticos que está no desemprego há dois anos e que, ao abrigo do artigo 21 da Constituição - que explicita ter lido integralmente -, reclama o direito de não pagar impostos dada a sua situação limite.
Não sou jurista e reservo para os peritos a avaliação quanto a esta pretensa, de resto entregue na Provedoria de Justiça onde seguramente será bem encaminhada.
Não sou, também, nem mais nem menos do que Alcides Santos, razão pela qual não me arrogo o direito de uma avaliação moralista sobre a sua atitude que, seguramente, terá contornos de desespero.
Mas a reclamação em si, não deixa de me fazer pensar... porque me causa estranheza, por exemplo: as crianças estarão na escola pública - pelo menos a de 15 anos- que é paga através dos impostos; em caso de necessidade de cuidados médicos, a família recorrerá porventura a um serviço público, pago através dos impostos; o próprio sistema judicial que analisará a reclamação é pago através dos impostos...
Mas então a recusa-resistente em pagar os seus impostos, mesmo que por incapacidade financeira real, não é uma quebra deste "contrato social"? Dizer que o Estado não tem cumprido as suas obrigaçoes- "O Governo não está a cumprir com o artigo que assegura o Direito ao Trabalho"- tem uma leitura unidimensional ou terá a consequência extrema, consistente com a decisão, de recusando contribuir também recusar beneficiar?
E se assim for, qual a lógica de solidariedade, de comunidade que subjaz a um Estado?
Confesso a minha estranheza. Confesso também a minha preocupação. Uma sociedade em que nos desvinculamos, deslaça-nos. Não acho que seja esse o caminho.
Blogs
Adeptos da Concorrência Imperfeita
Com jornalismo assim, quem precisa de censura?
DêDêTê (Desconfia dele também...)
Momentos económicos... e não só
O MacGuffin (aka Contra a Corrente)
Os Três Dês do Acordo Ortográfico
Leituras
Ambrose Evans-Pritchard (The Telegraph)
Rodrigo Gurgel (até 4 Fev. 2015)
Jornais