A própria composição do Tribunal Constitucional indica uma vontade expressa de que as suas decisões não sejam jurídicas, mas sim políticas.
Afinal, porque será o único Tribunal português constituido por elementos indicados pelos partidos? Porque não é um departamento (ou uma "secção", uma "divisão" ou um "órgão") do Supremo, totalmente formado por juízes "de carreira" (tão "independentes" como os outros), e subordinado ao Ministério da Justiça? O poder executivo não depende do Ministério da Administração Interna? Ou devemos capacitar-nos que o poder judicial, ou aquele que é suposto ser o seu núcleo mais basilar, deve ser exercido pelos partidos?
Não espero das instituições que tenham comportamentos contrários à sua orgânica. Nem é esperável. Magritte disse, com razão: a representação de um cachimbo não é um cachimbo.
Decidam-se as virgens que gritam em público as suas ofensas esperando que os sapateiros sejam, antes de mais, contratados para tocar rabecão.
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Imagem daqui.
E estamos nisto: Se o TC declarar a inconstitucionalidade das normas nas quais o Presidente tem dúvidas, cai-nos o céu em cima da cabeça; se não, toda a esquerda lembrará a suspeitíssima nomeação política dos Senhores Conselheiros, que explicará a decisão "favorável" ao Governo.
Entretanto, há tempo para pareceres sábios sobre o TC e a Constituição. Tropeçando neles, leio com atenção - tenho gostos estranhos em matéria de leituras.
Consideremos neste artigo o passo que diz: "... não é para isso que o Tribunal Constitucional serve. Pelo contrário, para além de servir para nos lembrar que temos uma Constituição, que somos filhos do constitucionalismo, serve também para nos recordar que no nosso sistema de checks and balances ..."
Para mim, este é o nó do problema: checks and balances. Uma Constituição, se serve para alguma coisa além da necessidade óbvia de regular o jogo político e a organização do Estado, é para defender o cidadão - dos abusos de outros cidadãos, e isso garante-se principalmente com o princípio da igualdade perante a Lei e o monopólio da violência por parte do Estado; e dos abusos do próprio Estado, e isso garante-se principalmente com a independência dos tribunais, o princípio da legalidade e uma longa lista de direitos, liberdades e garantias.
Mas a nossa prolixa Constituição foi, na lista dos direitos, longe de mais, porque quis garantir direitos económicos muito para além do da propriedade privada. E como boa parte deles só se pode exercer retirando recursos a uns para oferecer a outros, criou dois problemas: um o do crescimento das agências encarregadas da colecta, da distribuição e da fiscalização, em si mesmas improdutivas e consumidoras de recursos; e outro o da criação da crença difusa de que o mecanismo da criação de riqueza não é afectado pelas necessidades crescentes da colecta de impostos.
Esta mecânica infernal não podia acabar bem. E porque a patente contradição entre necessidades e recursos para as satisfazer recomendava uma impossível marcha-atrás no exercício dos direitos: enveredou-se, com o pano de fundo do crédito barato e abundante que o Euro propiciou, pelo caminho de gastar agora e ver depois - o que a longa lista de investimentos públicos patetas, na esperança louca de pôr o Estado a dinamizar a economia, contribuiu para agravar.
Dissesse a Constituição que a despesa pública não pode ultrapassar xis por cento do PIB; ou que os impostos sobre o rendimento não podem ir além de ípsilon; ou colocasse obstáculos à contracção de empréstimos e assunção de outros encargos para futuro: e teríamos um bom conjunto de balances que o TC haveria que ter em conta.
Mas é claro que não pode o Tribunal ver na Constituição o que lá não está; e, se lá estivesse, não precisaria provavelmente de ver - não tínhamos chegado aqui.
Razões por que, por ínvios caminhos, acabo por dar aos pesos e contrapesos tanta ou mais importância que a que lhes atribui o autor do texto referido acima. Mas temo que não estejamos exactamente a falar dos mesmos.
Pensando no problema constitucional que o dr. Cavaco recentemente tomou a iniciativa patriótica de levantar, resolvi reler o seu famoso artigo "O Monstro". Fui à procura de gralhas. Não havia. Segue o texto.
«Na ciência económica há um modelo explicativo do crescimento das despesas públicas em que o estado é visto como um monstro de apetite insaciável para gastar mais e mais. É o modelo do Leviatão. São várias as razões apresentadas para justificar o apetite do monstro:
- os ministros estão convencidos de que mais despesas públicas trazem-lhes mais popularidade e votos, porque assim podem distribuir mais benesses e ser simpáticos e generosos com os grupos que comem à mesa dos orçamentos dos seus ministérios;
- os burocratas, os directores da Administração Pública, lutam pelo aumento das despesas controladas pelos seus departamentos, porque isso lhes dá poder, influência e estatuto;
- os grupos que beneficiam directamente com os gastos do Estado estão melhor organizados do que os contribuintes que pagam os impostos e pressionam os políticos para mais despesa pública;
- muitas pessoas pensam que os serviços fornecidos pelo Estado não custam nada, porque sofrem de ilusão fiscal e não se apercebem de que as despesas têm sempre de ser financiadas com impostos, presentes ou futuros.
Há indicações de que hoje, em Portugal, o monstro anda à solta, atinge um tamanho alarmante e está incontrolável. O orçamento para o ano 2000, em discussão na Assembleia da República, é a prova disso. As despesas públicas apresentam um crescimento enorme e correspondem a mais de metade da produção nacional no ano. Pensa-se, contudo, que a dimensão do monstro é ainda maior que a retratada no orçamento apresentado pelo Governo. Com efeito, muitas despesas públicas fogem ao orçamento votado pela Assembleia da República. Esta parte escondida do monstro não é desprezível, devendo atingir centenas de milhões de contos.
Por outro lado, é amplamente reconhecido que o crescimento das despesas do Estado tem alimentado desperdícios e não se tem traduzido em melhoria dos serviços públicos prestados à população. Repare-se, por exemplo, nos relatórios do Tribunal de Contas que têm sido divulgados, onde sobressaem as ineficiências e fraudes na utilização dos dinheiros públicos. O aumento da despesa pública tem servido, acima de tudo, para satisfazer o apetite voraz do monstro e alargar a sua camada de gordura.
Quer isto dizer que mais de metade da produção que os Portugueses realizam é hoje desviada para alimentar o monstro. Os benefícios do aumento das despesas do estado que resultam dos serviços públicos (como educação, saúde ou segurança) ou da redistribuição do rendimento são claramente inferiores aos custos que os indivíduos suportam através do pagamento de impostos.
Durante algum tempo, as forças políticas mais à esquerda apoiaram o crescimento das despesas do Estado, convencidas de que daí resultava uma redução das desigualdades. Essa ilusão foi destruída pelo fenómeno da globalização e da integração económica e financeira. A liberdade dos movimentos de capitais com o exterior e a concorrência fiscal entre os países fizeram com que o crescimento das despesas seja financiado principalmente com impostos sobre o trabalho e não à custa dos rendimentos do capital. Hoje não há dúvidas de que o crescimento do monstro destrói riqueza e agrava as desigualdades na distribuição do rendimento.
Penso que o Ministério das Finanças está consciente de tudo isto e está cheio de medo do monstro. Já o anterior Ministro das Finanças, no final do seu mandato, confessava, desalentado, que não tinha conseguido controlar o crescimento das despesas correntes do estado, porque dentro do Governo havia fortes lobbies a favor do monstro. A própria Comissão Europeia, no seu «Relatório sobre a Situação em Matéria de Convergência e respectiva Recomendação com Vista à Terceira Fase da União Económica e Monetária», salienta que Portugal foi o único país da União em que o monstro cresceu na caminhada para o euro.
Não tenho dúvidas de que alguns membros do Governo do actual Ministério das Finanças conhecem bem o perigo que o monstro representa para a economia nacional e é provável que o seu silêncio e olhar triste sejam não só um sinal de medo, mas também um apelo para que os ajudem a enfrentar a besta.
O próprio ministro confessou há dias que tinha adiado para o próximo ano o combate ao monstro. Não me surpreende esta atitude, porque eu próprio a tinha antecipado num artigo que tinha publicado no DN no início da presente legislatura, em que me pronunciava contra a decisão de reunir sob o comando de um só ministro as áreas das finanças e da economia. O retrato do monstro que emerge do orçamento para o ano 2000 é a demonstração inequívoca de que foi uma decisão errada.
Mas o apelo mais lancinante chega-nos da Senhora Ministra da Saúde: «Mais dinheiro para a saúde só piora a situação do sector.» A Senhora Ministra sabe do que fala, conhece o monstro, pois foi Secretária de Estado do Orçamento e é uma reputada especialista de finanças públicas.
No ponto em que nos encontramos, só os partidos da oposição podem responder a estes apelos angustiantes, mas igualmente corajosos, e ajudar o Ministério das Finanças a enfrentar o monstro. Não devem deixar de fazê-lo, porque a situação é grave. Os interesses meramente partidários devem ficar de lado. Deixar o monstro continuar à solta é contribuir para destruir a riqueza nacional, prejudicar o crescimento económico do País, agravar as injustiças e impedir que o nível de vida dos Portugueses se aproxime da média europeia. A urgência em conter o crescimento das despesas do Estado sobreleva tudo o mais.
Há três contributos que a oposição pode dar para ajudar o Ministério das Finanças:
- votar contra o aumento da carga fiscal que o orçamento para o ano 2000 inclui, por forma a reduzir o fluxo de combustível que alimenta a fúria do monstro;
- impedir que as receitas das privatizações sejam utilizadas para financiar as despesas públicas, não tanto porque isso seja ilegal face à legislação portuguesa e comunitária, mas para impedir que o monstro, para além de devorar mais de metade da produção nacional, engula também património acumulado ao longo dos anos;
- pedir ao Senhor Ministro das Finanças que elabore um novo orçamento, dando-lhe a garantia de que pode contar com o apoio dos partidos da oposição no combate pelo emagrecimento do monstro. O ministro sentir-se-á então com mais força para desembainhar a espada e cortar-lhe a camada de gordura, eliminando alguns desperdícios nos gastos do Estado. Deve exigir-se que seja um novo orçamento, mas verdadeiro, sem artifícios contabilísticos e défices ocultos.
É perigoso adiar este combate. Se no primeiro ano da legislatura, e sem que ocorram eleições autárquicas, o Governo prevê que as despesas correntes do Estado aumentem a uma taxa dupla da do produto, o que não será quando nos aproximarmos das eleições?
Receio bem que o monstro atinja uma tal dimensão que o combate, depois, não se faça sem muitos feridos quer do lado do Governo, quer do lado dos partidos da oposição, sem falar nos estragos causados à economia nacional e ao bem-estar dos Portugueses.»
(Aníbal Cavaco Silva, in Diário de Notícias, 17 de Fevereiro 2000)
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