Nunca aceitei, nem aceito voluntariamente, as quotas para mulheres – nos cargos resultantes de eleições, nos de direcção de empresas e em todas as situações em que estejam sub-representadas e essa sub-representação seja apresentada, com boas ou más razões, como advinda de preconceitos.
Não é que, no mercado de trabalho ou na dura competição pela obtenção do poder político, elas não tenham objectivamente handicaps, sobretudo se tiverem ou quiserem ter filhos. É que, legalmente, a condição de mulher já está reconhecida como de perfeita igualdade em direitos e portanto o inegável surgimento de mulheres em lugares de mando é uma legítima conquista fundada no mérito. Tão pacíficas hoje, a evolução e o mérito, que ninguém no espaço público e na opinião defende uma marcha-atrás nos direitos cívicos das mulheres, ou na igualdade entre os sexos, nem torce o nariz quando uma delas atinge lugares de topo, senão pelas mesmíssimas razões que torceria se fosse um homem – isto é, por se tratar de uma imbecil, ou ignorante, ou esquerdista, ou fascista, ou outra coisa qualquer que não tem nada a ver com sexo e tudo com ideologias, crenças, práticas e discurso.
Dito de outro modo: eu acho a senhora Úrsula von der Leyen um perigo e a senhora Lagarde uma estrela pop, uma por ser federalista e a outra por ser um saco de vento inconstante e superficial. Mas nada permite supor que desempenharão pior papel do que qualquer dos seus colegas, visto que na alta roda do funcionalismo supranacional não há falta de homens com aquelas características: lembremo-nos de Guterres, tão oco e esponja de ideias boazinhas que andam no ar que para ser ainda mais politicamente correcto só lhe falta usar saias, ser gay e vegan, tudo a tempo parcial. A tempo completo, continua a ser o perfeito patarata verboso que foi toda a vida.
Pois bem, o sistema de quotas para mulheres tem dois problemas:
Um é o de que, se uma mulher chega a um lugar por ser mulher e não por ser melhor do que qualquer outro candidato, a qualidade do desempenho só pode, se a lógica não for uma batata, ressentir-se. É certo que o preconceito pode, em circunstâncias iguais ou parecidas, fazer pender a balança para o lado dos homens, sobretudo se quem decide tiver, como muitos provavelmente terão, preconceitos inassumida ou inconscientemente misóginos. Sucede que confiar na evolução dos costumes é um caminho seguro – dificilmente farão marcha-atrás se entregues a eles próprios; mas acreditar na engenharia social e nos poderes do Estado para os reformar pode despertar, e desperta quando não haja consenso, a reacção dos que foram derrotados circunstancialmente – quem manda e legisla hoje são uns e amanhã outros. Tenham paciência, senhoras, o caminho da engenharia social é reversível.
Outro é o do precedente: se as mulheres estão insuficientemente representadas nos lugares de topo porque neles não figuram na mesma proporção que no conjunto da população, o mesmo raciocínio se pode aplicar a outros cidadãos com marcas distintivas já não de sexo mas de orientação sexual (gays ou lésbicas, p. ex.), origem étnica (pretos, ciganos, asiáticos, etc.), religião (muçulmanos, ateus, protestantes sortidos, etc.) e o mais que se queira que permita identificar um grupo social qualquer que não esteja, ou não se ache, adequadamente representado. E, é claro, se incluirmos no leque de instituições as do ensino, porque sem graus académicos numerosas carreiras estarão vedadas, então é apenas uma questão de tempo até termos quotas para homens, porque estes já estão hoje insuficientemente representados na maior parte dos graus de licenciatura.
Ou seja, a derrogação do princípio todos iguais perante a lei, por generosa que pareça a bandeira sob a qual se acolhe (feminismo, anti-racismo, igualitarismo, etc.), é grávida de uma interminável guerrilha com vencedores hoje que serão os derrotados de amanhã, e abre uma porta de conflitualidade dispensável. E não se julgue que o facto de as mulheres serem a maioria impede qualquer reversão das conquistas do feminismo assanhado: porque precisamente porque as mulheres não são inferiores aos homens e não têm menos discernimento na avaliação das políticas públicas é que, a prazo, julgarão com severidade todas as distorções que, em nome delas, se operaram pela longa e intrusiva mão do Estado.
Maria de Fátima Bonifácio, em artigo no Público de sábado passado (disponível apenas para assinantes), verbera este estado de coisas e manifesta-se contra as quotas para negros e ciganos a propósito das declarações de um tal Rui Pena Pires, secretário nacional do PS, que terá declarado: “O PS quer discriminação positiva para as minorias étnico-raciais” e “Se fizermos uma política de alargamento de acesso ao ensino superior, já resolvemos parte do problema. Não faz sentido ter um ensino virado para os melhores alunos, mas sim para todos os que têm as condições mínimas para entrar”.
Por outras palavras: o PS quer votos cativos de pretos e ciganos e para o assegurar está disposto a meter no Parlamento, e eventualmente no governo, algumas personagens daquelas etnias que poderão até não fazer má figura, tendo em conta que num e noutro órgão do que não há falta é de personagens especialistas em patacoadas interesseiras e bons amplificadores de disparates bem-pensantes. Mas isto é o menos: abandalhar o grau de exigência do ensino (não há recursos para meter todos, e por conseguinte dar preferência a uns implica excluir outros melhores, para já não falar de uma discriminação ilegal à luz da Constituição, se bem lida) tem um custo oculto: as nossas pobres elites, cuja qualidade está ligada em parte à do ensino superior, levam mais um golpe.
Portanto, eu estou com Maria de Fátima Bonifácio. Mas apenas nas conclusões. Sobre os pressupostos, Rui Rocha escreveu no Facebook o seguinte:
Em artigo publicado hoje, Maria de Fátima Bonifácio afirma a não descendência (?) de africanos e ciganos da Declaração dos Direitos do Homem. Isto é usado para recusar um sistema de quotas. Mas, se admitíssemos o argumento, este serviria facilmente para negar-lhes também esses mesmos direitos fundamentais. Porque não “descendem”, teríamos que aceitar, por exemplo, que não se lhes aplica o princípio de que todos os seres humanos nascem livres e iguais. Aceitar esta tese abre a porta a um inquietante relativismo moral que parece ser, aliás, aquilo que Bonifácio queria combater. A proposta de quotas deve ser discutida a partir do entendimento sobre os princípios da liberdade e da igualdade, mas nunca da “descendência” ou não de valores fundamentais e universais”.
Subscrevo, ainda que qualificasse a “igualdade” acrescentando-lhe “perante a Lei”. E acrescento: O Estado não pode nem deve tolerar comportamentos e práticas que, em nome do multiculturalismo, ofendam valores axiais (com perdão da palavra) do tipo de sociedade que temos, desde logo a igualdade entre os sexos ou a liberdade de expressão da opinião, por exemplo. E isto sem complexos, porque comportamentos não são opiniões, salvo quando estas consistam no incitamento à prática de crimes. Opiniões, cada um tem as que tiver e é livre de as exprimir porque não é a mesma coisa ter opiniões racistas (que são perfeitamente legítimas, tanto como acreditar que a terra é plana, o comunismo o fim da História, ou outro disparate qualquer) e agredir, desconsiderar ou por qualquer forma discriminar um negro; e pode achar-se, e até acreditar por razões religiosas, que a excisão genital feminina é algo de positivo para a coesão social, mas isso não deve impedir que quem a recomende e pratique seja criminal e severamente punido.
Por mim, estou certo de que não é cientificamente defensável que por causa de características físicas genéticas haja alguma espécie de superioridade ou inferioridade de algum grupo humano, a viver entre nós ou algures; mas isto não é a mesma coisa que imaginar que todas as culturas se equivalem. Se fosse o caso, todo o progresso social seria impossível porque não haveria em nome do que mudar. E não estou certo, ao contrário de Fátima Bonifácio, que a integração de certas comunidades seja impossível: a tolerância em relação a comportamentos ofensivos dos valores que temos como essenciais, sob o pretexto da neutralidade cultural, é que pode atrasar a integração; e a discriminação positiva também, por ser o reverso da mesma moeda.
Finalmente, no dia seguinte o director do Público achou útil publicar um editorial lamentável, em que pede desculpa aos leitores por, em nome da pluralidade da opinião, dar guarida a um texto com “proximidade a teses racistas e xenófobas”.
Em vez de qualificar erroneamente um texto que tresleu, teria feito bem em não dizer nada ou, no máximo, esclarecer pela milionésima vez que a liberdade de opinião ou serve para exprimir pontos de vista dos quais se discorda ou não serve para nada.
Em 13 de Maio último escrevi um texto sentido em homenagem à minha tia Fernanda.
Não sabia, e só soube há pouco, que ela tinha feito um testamento em que deixava ao irmão com quem vivia os bens móveis e dinheiro em banco, bem como o usufruto da casa de que era proprietária.
O testamento não dizia mais nada e portanto a casa ficava para os dois irmãos sobrevivos e uma rechimbada de sobrinhos (creio que 13 ou 14, incluindo-me a mim e aos meus cinco irmãos).
Dois dos meus manos renunciaram à herança e entre telefonemas e e-mails deles e de um dos dois tios, descobri com espanto que teria de pagar um montante indeterminado ao Fisco pelo privilégio, que confirmei no Portal das Finanças, de ser herdeiro. No mesmo Portal, diz-se ominosamente que sou “cabeça de casal”, mas pelo menos um irmão, e um dos tios, também são assim considerados, pelo que ou a classificação é um expediente para responder por dívidas de outros ou o Fisco ainda não ouviu falar de igualdade entre os sexos – duvido inclusive que até mesmo o meu cão me considere cabeça de coisa alguma.
Também quis renunciar à herança ꟷ uma vivenda com um pouco de terreno em Freamunde ꟷ mas fui informado de que em tal caso ela se transmitiria automaticamente para as minhas duas filhas, que igualmente teriam que pagar, a menos que também renunciassem. E como uma das filhas é deficiente profunda mas não está interditada, teria de a interditar primeiro – uma via dolorosa de papelada susceptível de me pôr, se os tivesse, os cabelos em pé.
O tio que não ficou com o usufruto ligou-me hoje e diz o seguinte: Que ficou encarregado de recolher de mim e de cada um dos meus irmãos 334,27€ para pagar à Fazenda a título, parece, de imposto de selo; que lá lhe disseram que tem de pagar tudo, e que portanto se algum dos sobrinhos não pagar, paga ele, por ser cabeça de casal; que protestou perguntando a que propósito, e por nomeação de quem, passou a ser cobrador do Fisco, mas lhe foi respondido que “era a lei”.
Já fiz a transferência. É possível, mas não certo, que a informação do funcionário não seja completamente correcta, mas infirmar o que diz, ou aliás o que diga qualquer outro funcionário, não paga o esforço nem ajuda o concidadão – o funcionário é inimputável e se tem o hábito, por ignorância ou estupidez, de infernizar a vida a toda a gente, fá-lo-á tranquilamente até à reforma.
Parece que não há imposto sucessório – acabou. Mas é claro, pelo que se vê, que não acabou, apenas mudou de nome. E como desejo sinceramente que o meu tio que lá continua a viver o faça por muitos e bons anos, e não tenho portanto intenção de o assassinar, o imposto incide sobre um bem do qual só terei uma ínfima parte daqui a muito tempo, e que só servirá para alguma coisa se puder ser vendido.
Qual é portanto a taxa do imposto? Ninguém sabe, foi calculado sobre um valor que o próprio Fisco estima, mas que eu estimo em zero porque, senão, não me ocorria renunciar.
Mas já me foram prevenindo: é melhor nem perguntar sobre o IMI. Eu acho que só o usufrutuário é que paga, pela lógica, mas a lógica não tem nada a ver com isto.
O que tem a ver com isto é o socialismo. Os meus concidadãos, que alegremente o escolhem desde há quarenta anos, já começam a ver, pelo SNS que abre brechas todos os dias, que acaba quando acaba o dinheiro dos outros. E os filhos deles, que vão herdar as casas que os pais penosamente pagaram e penosamente mantêm, descobrirão a seu tempo que quando acaba o dinheiro dos outros o Estado vem buscar o deles.
Paulo Ferreira, neste excelente artigo sobre a Lei de Bases da Saúde, acaba assim:
Pensavam que a preocupação essencial do BE e do PCP era ver de que forma se pode prestar às populações os melhores cuidados de saúde possíveis aos melhores custos para os contribuintes?
Desenganem-se. Nada disso os preocupa. Nem isso nem o caos no SNS. A cegueira ideológica contra tudo o que é privado é mais importante. E essa não tem cura nem no melhor hospital do SNS, que é provavelmente uma PPP.
Henrique Pereira dos Santos, ao partilhar o artigo no Facebook, disse o seguinte:
E se dúvidas houvesse.
A pergunta para a qual não tenho resposta é a seguinte: sendo isto mesmo assim, e é de facto, sendo a generalidade das pessoas razoáveis, o que leva pessoas razoáveis a votar nisto que as prejudica directamente?
Comentei:
Suponho que uma parte da explicação esteja na forma como se encara a igualdade. A esquerda diz que a saúde não é um negócio e isso apela às pessoas a quem repugna que alguém ganhe dinheiro com os cuidados de saúde que lhe presta, e que são, creio, a maioria das pessoas, irmanadas nessa rejeição. Por estranho que pareça, muitas pessoas preferem cuidados de saúde piores desde que o vizinho (ou o patrão, ou o desconhecido, o outro numa palavra) não os tenha melhores.
Fiquei a pensar nesta troca ligeira de opiniões e de que forma pode ela lançar alguma luz sobre a estranha contradição em que vivemos. É que não é só o Serviço Nacional de Saúde que todos os dias mostra o que lhe fizeram a redução do horário de trabalho, as cativações e os cortes no investimento: os jornais estão pejados de notícias sobre serviços públicos que não funcionam, atrasos injustificáveis, um clima geral de degradação e insatisfação, para não falar do colapso do Estado, ainda recente, na segurança e protecção de vidas e bens. O único serviço público que funciona aparentemente sobre rodas é o Fisco, cujos poderes para-totalitários, abusos sortidos e ganância predadora só há pouco e timidamente começaram a chegar aos meios de comunicação social, mesmo assim apenas porque a impunidade o levou a acções grotescas e de grande visibilidade pública, como o escândalo das penhoras de carros (aliás, já abafado) numa rotunda de Valongo.
De resto, os alegados triunfos na diminuição do défice baseiam-se na padiola juros baixos/aumento de receitas fiscais/cativações/corte nos investimentos, mas mesmo tendo em conta as reversões de cortes para funcionários e pensionistas é impossível que os cidadãos, até mesmo aquela maioria isenta de IRS, não se apercebam da vigarice do imposto sobre os combustíveis, dos aumentos demenciais de taxas e multas e da degradação dos serviços.
(Disse “alegados triunfos” porque o défice de 2010, objecto à época de uma grande baralhada quanto ao seu valor, foi revisto em 2014 para o bonito número de 11,2%, por sua vez sobre valores já anteriormente revistos. O tipo de trapaceiros que então estava no Governo é o mesmo que hoje lá está. E o celebrado Centeno já deu provas mais do que abundantes que é perfeitamente capaz de torcer a sua imaginária independência, e a sua propalada competência técnica, a tal ponto que pede meças ao mais prestigiado – in illo tempore – dos economistas saídos da coudelaria do PS, a saber Vítor Constâncio. A prova mais recente, numa litania delas, é esta entrevista em que declara que “eu tenho a certeza de uma coisa: o Serviço Nacional de Saúde, hoje, é melhor do que era em 2015. Não tenho nenhuma dúvida sobre isto”).
O Estado que nos entra todos os dias em casa pela televisão, a qual estende um microfone obediente e lisonjeiro a quanto governante sai do seu gabinete em Lisboa para se dedicar à propaganda, não é o Estado com que as pessoas lidam; o governo que temos não foi sufragado nem nos seus apoios, que não foram aventados na campanha eleitoral, nem nos seus processos, que assentam num respeito pelas contas públicas sem tradição no PS e sem arautos na mesma campanha; é tentador, mas não é realista, achar que o eleitorado é suficientemente estúpido e ignorante para comprar acriticamente a barragem de propaganda. Por que razão então o PS se mantém teimosamente à frente nas sondagens e ganhou as europeias?
Dizem muitos que há um divórcio crescente entre o eleitorado e os eleitos, do que é prova o teimoso abstencionismo a mais do que 50%. E, pressurosos, oferecem soluções para curar este afastamento, através da reforma das leis eleitorais. Sob o mérito destas reformas disse o que me parecia. Mas mesmo que as taxas de abstencionismo viessem para níveis aceitáveis, e mesmo que se acredite que as pessoas mais disponíveis para votarem à direita são as que ficam em casa, quem confiar em que a direita tem muito a ganhar, ou a perder, pelo mero efeito de os candidatos dependerem mais dos eleitores e menos dos directórios partidários, está a sonhar.
Parece hoje razoavelmente pacífico que, desde que a geringonça entrou nos costumes, a direita desunida entre os seus dois partidos tradicionais, mais os que entretanto foram surgindo, dificilmente pode chegar ao Poder, salvo em caso de nova falência. E ela, a falência, não sendo impossível, tornou-se pouco provável sem que a União Europeia rua, porque o novo PS tornou-se no bom aluno de que falava Cavaco e o BCE amparará até onde puder os bons alunos.
Se o PS se tornou no bom aluno que o PSD se orgulhava de ser, então o eleitorado não tem nenhum motivo forte para despedir o PS, nem aliás para sair de casa para ir votar. Acresce que Rui Rio, um evidente erro de casting, consegue ser, para a guerrilha partidária, um nabo, e para uma estratégia de conquista do Poder e reforma do Estado, uma inexistência.
Quanto ao CDS, esperar a herança dos votos perdidos do PSD tem-se mostrado ilusório: os antigos eleitores, agora abstencionistas, não fazem muita questão de mudar para quem só se distingue do resto da direita porque vai muito à missa.
A direita precisa de se unir em torno de um programa comum de mínimos, está mais que visto, e a oportunidade apresentar-se-á, pela lógica inelutável das coisas, depois das legislativas, daqui a três meses, a menos que o futuro, mesmo próximo, não rape da manga uma surpresa qualquer que altere tudo, como tem o detestável hábito de fazer. Essa surpresa bem podia ser uma coligação PS/PSD pós-eleitoral, que teria a grande vantagem de acabar de vez com o equívoco de se agregar debaixo da mesma bandeira o PSD de Passos Coelho, que não é socialista, com o PSD de Pacheco Pereira, que é.
Esse programa mínimo não pode ter como bandeira o equilíbrio orçamental, que por ser um dado adquirido já não separa águas. E não lhe chegará desmontar a intensa barragem de propaganda que é a marca de água do PS (Portugal não pára de bater recordes de endividamento), antes terá que apresentar uma estratégia clara e reformista para sustar o lento deslizar do país para a vizinhança dos mais pobres da Europa.
Tudo isto é relativamente pacífico para quem não sofra de infecção por qualquer dos vírus mutantes da doença socialista. Mas aqui tiro o meu antecipado chapéu a quem tiver de encabeçar a empresa. Porque é preciso vencer a resistência do eleitor que foi convencido por quatro décadas de lavagem cerebral que a igualdade material é motor de qualquer outra coisa que não seja estagnação, e que o segredo do progresso está num Estado melhor em vez de uma sociedade mais livre. À pergunta de Henrique Pereira dos Santos, que transcrevi cima, respondo com uma história verídica:
No tempo das inflacções altas, quando havia frequentes e nominalmente significativos aumentos de salários, administrava uma empresa com mais de cem operários, e o momento da revisão era sempre fonte de tensão. A uma funcionária que se me veio queixar expliquei pacientemente quais os critérios que havia seguido, e por que motivo, ligado à avaliação que fazia do desempenho, não atribuía a mesma percentagem de aumento a todos os trabalhadores. A moça, que de estúpida tinha nada, ouviu com atenção e respondeu: Olhe, Sr. Fulano, pode até ter razão mas eu preferia ter um aumento mais pequeno se todos o tivessem por igual.
Nem todos os eleitores serão assim, mas há uma quantidade impressionante que é. Dantes, quando as feministas ainda não se tinham transformado nas chatas obsessivas que hoje são, diziam ocasionalmente, com exagero, que as mulheres tinham de fazer tudo pelo dobro para que o seu mérito fosse reconhecido pela metade. Sem exagero, um político de direita tem o mesmo obstáculo: esforçar-se o dobro para convencer o eleitor de que com uma empresa grande todos, a prazo, beneficiam.
Compareci no hospital à hora marcada, em jejum, para o efeito de me enfiarem pelo rabo acima um gadanho para inquirir in loco dos desmandos de uma víscera indisciplinada. Como uma desgraça nunca vem só, a maré foi julgada oportuna para estadear dentro de um tubo, imóvel, ao som de várias escaramuças de metralhadora, por espaço de mais de meia hora, com o propósito de apurar o estado de uma outra, usualmente discreta, mas que em exame anterior havia dado de si indicações ominosas.
É bom de ver que o estado de espírito não era excessivamente bem-disposto. E a ausência da ração de três cafés com que há muito tempo começo um novo dia recomendava, para quem me conhece, a precaução de me passar ao largo.
A menina na recepção, após um pequeno tempo de espera, disse:
ꟷ Prontos, Sr. José, é sempre em frente, na sala tal, serviço tal.
Logo ali, signifiquei carrancudo à funcionária que Sr. José era o meu jardineiro. E na tal sala outra recepcionista, igualmente novinha, simpática e ignorante, foi objecto do mesmo esclarecimento e da desnecessária informação de que o meu sobrenome figurava no papel que tinha na mão.
O médico, jovenzinho (há uns anos uma profusão de profissionais me começaram a parecer jovenzinhos) era surpreendentemente da mesma escola, mas prudentemente abstive-me de lhe dar a formação, antes do exame, em normas de trato de que carecia; guardei-a para depois.
Os resultados dos exames vieram e, como esperava (pratos ruins não caem abaixo do louceiro), não havia nada além da patine e das mazelas comuns para a idade e estilo de vida.
Fui mostrá-los ao meu médico, amigo antigo e anormalmente (para a profissão) sensato, na clínica que dirige.
Actualizou o meu cadastro, inquiriu, como habitualmente, se já tinha deixado de fumar e, como habitualmente, foi inteirado de que sim, há cerca de dez minutos, preencheu requisições para análises lá para Setembro, e como na recepção da clínica já tivesse havido o ritual do “Sr. José” para a frente e “Sr. Graça” para trás, contei-lhe a história – da clínica dele e do hospital privado onde torturam as pessoas a requisição médica e, sem requisição, se lhes dirigem como se pertencêssemos todos à geração mais bem formada de sempre.
Disse-me que era uma guerra perdida ꟷ a malta nova era incapaz de aprender fórmulas correctas de trato. Mas que, se eu julgava que a coisa era fácil de explicar, lhe mandasse um texto simples. Claro que o que ele queria era fechar-me a matraca, mas o expediente escolhido não era o mais indicado para mim, que tendo a ser incontinente verbal, e pior ainda por escrito.
O texto que lhe enviei, sumário e simples, figura abaixo.
Convenções sociais são as normas, geralmente não escritas, e que evoluem lentamente, pelas quais se regem os cidadãos nas suas relações com os outros. É em nome delas que ninguém em seu juízo comparece a um velório de pijama ou vai a um casamento em fato de banho; e é em nome da evolução dos costumes que já ninguém é tratado por “Vossa Mercê”.
Variam com o tempo e têm vindo há muito a mudar de mais para menos formais. Não cabe porém aos funcionários deste estabelecimento ou qualquer outro serem inovadores em matéria de trato social, mas antes respeitarem as normas comummente aceites, o que se verifica frequentemente não acontecer.
Razões por que abaixo se dão, em termos práticos, orientações sobre as fórmulas de trato que devem ser seguidas quando os funcionários se dirijam a utentes desta Casa de Saúde.
Em relação a utentes do sexo feminino
Quando exista e se conheça o grau académico, as senhoras devem ser tratadas por esse grau, por exemplo: Sra. Dra., Sra. Engenheira, Sra. Arquitecta, etc. Deste modo, e NUNCA simplesmente por Dra., Engenheira, Arquitecta, etc.
Se porém o funcionário não se estiver a dirigir directamente à pessoa mas a chamá-la de entre um grupo (o caso mais vulgar é a sala de espera) deverá, além do Sra. [grau académico] acrescentar o primeiro e o último nome, por exemplo: Sra. Dra. Maria Alves, Sra. Engenheira Antónia Ferreira, Sra. Arquitecta Francisca Silva, etc.
Quando não exista ou não se conheça o grau académico, as senhoras devem ser tratadas pelo nome próprio, precedido de Sra. Dona. Por exemplo, Sra. D. Maria, Sra. D. Antónia, Sra. D. Francisca, etc. É preferível, porém, se a pessoa tiver dois nomes próprios, usar os dois, como segue: Sra. D. Maria da Glória, Sra. D. Antónia Maria, Sra. D. Francisca da Anunciação, etc. NUNCA Sra. Maria, Sra. Antónia, Sra. Francisca, etc.
Se porém o funcionário não se estiver a dirigir directamente à pessoa mas a chamá-la de entre um grupo (por exemplo, na sala e espera) deverá, além do Sra. D. [nome ou nomes próprios], acrescentar o último sobrenome, tal como: Sra. D. Maria Alves, Sra. D. Antónia Ferreira, Sra. D. Francisca Silva, etc.
Em relação a utentes do sexo masculino
Quando exista e se conheça o grau académico, os senhores devem ser tratados por esse grau, por exemplo: Sr. Dr., Sr. Engenheiro, Sr. Arquitecto, etc. Deste modo, e NUNCA simplesmente por Dr., Engenheiro, Arquitecto, etc.
Se porém o funcionário não se estiver a dirigir directamente à pessoa mas a chamá-la de entre um grupo (por exemplo, na sala de espera) deverá, além do Sr. [grau académico] acrescentar o primeiro e o último nome, a saber: Sr. Dr. Mário Alves, Sr. Engenheiro António Ferreira, Sr. Arquitecto Francisco Silva, etc.
Quando não exista ou não se conheça o grau académico, os senhores devem ser tratados pelo nome próprio e último sobrenome, precedido de Senhor, quer os funcionários se lhes estejam a dirigir directamente quer estejam a ser chamados, por exemplo na sala de espera. Quer dizer, no caso, Sr. Mário Alves, Sr. António Ferreira, Sr. Francisco Silva, etc. Ou, alternativamente, apenas por Senhor seguido do último sobrenome, por exemplo Sr. Alves, Sr. Ferreira, Sr. Silva, etc., mas neste último caso apenas quando o funcionário se esteja a dirigir directamente ao utente.
A razão de ser desta distinção é que quando se chama uma pessoa na sala de espera devem ser limitadas ao máximo as probabilidades de confusão, para além de ser útil significar publicamente, pelo formalismo do trato, o respeito que à instituição merecem todos os clientes.
Em relação a crianças e adolescentes
Crianças podem ser tratadas pelo nome próprio e por tu, se muito novinhas, mas se chamadas, por exemplo na sala de espera, deve preceder-se o nome próprio e sobrenome de “menino” ou “menina”, por exemplo menino Mário Alves, menino António Ferreira, menina Francisca Silva, etc.
Com adolescentes, se ainda novos, pode suprimir-se o “senhor” e “senhora”, mas não se deve utilizar o “tu”.
É em nome do respeito devido a todos os clientes desta casa que se recomenda a atenção às normas de trato vigentes, cuja ignorância pode ofender, cujo atropelo não tem quaisquer vantagens e cuja memorização não apresenta particulares dificuldades.
O senhor presidente da República anunciou há dias uma crise na direita e ofereceu-se para servir de fiel na balança dos equilíbrios políticos para logo a seguir aos resultados das próximas legislativas. Rui Rio, que lidera uma parte do PSD e que convencionalmente a comunicação social descreve como “líder da oposição”, não gostou: para ele há uma crise sim, mas no sistema político democrático como um todo, do que seriam prova, presume-se, os quase sete milhões e meio de abstencionistas nas recentes eleições para o “parlamento” europeu, num universo de pouco mais de dez milhões e setecentos mil eleitores.
Almas atormentadas e engenhosas oferecem soluções para esta alegada crise do regime democrático e encontram o remédio numa reforma das leis eleitorais, sem a qual o eleito cada vez estará mais distante do eleitor – daí o grau crescente do abstencionismo. O eleitor não conhece o deputado, que realmente não elege, salvo talvez o cabeça de lista e eventualmente um ou dois nomes, e aquele depende portanto dos jogos de poder internos dos partidos, e da confiança do líder, e não do eleitor do seu círculo. Ah, que se o candidato a deputado dependesse directamente de quem o elege, como na Velha Albion, veríamos a qualidade média do deputado subir esplendorosamente e o Parlamento dar todos os dias prova de grande independência em relação aos poderes dos líderes, que por sua vez cessariam de viver embrulhados em obscuras moscambilhas para lhes perpetuar o poder.
Ribeiro e Castro é um campeão desta maneira de ver as coisas. E oferece uma solução completa, equilibrada e respeitando ao mesmo tempo a proporcionalidade e a responsabilidade directa de ao menos uma parte dos deputados.
Intelectualmente, a proposta é atraente. Sucede porém que quem dela espera a solução para a “crise”; quem julga que algum dos problemas sérios do país será com ela ultrapassado; quem sonha com um parlamento “de direita” lá onde está um parlamento de esquerda; e quem imagina que no lugar de calões, subservientes, parlapatões, inúteis e medíocres, passaríamos a ter direito a intelectuais probos, oradores brilhantes, estadistas lúcidos e cidadãos independentes que o sucesso das suas carreiras profissionais garantiria, está a enfiar um dedo no olho até ao cotovelo.
Por partes:
Marcelo nunca viu, em toda a vida, nada para além dos joguinhos tácticos, nos quais é brilhante, para obtenção e conservação do poder, nem nunca fez ou disse, nem sabe fazer, dizer ou pensar, nada de relevo para qualquer reforma do país, cujos problemas identifica com a estabilidade do regime falido e exangue a que alegremente preside com um sorriso beato e auto-congratulatório. O que diz é apenas um expediente para realçar o seu desejo de estar no centro dos acontecimentos, conforme aliás toda a gente que pensa percebeu. O eleitorado, porém, não; e nessa ignorância, distracção ou inconsciência faz Marcelo, provavelmente bem, a sua aposta. Deixemo-lo em paz, que na realidade é apenas um doutoral Tino de Rans.
Sucede que quase toda esta gente tem razões de queixa do sistema actual, que em algum momento os triturou por lhes ter vedado o acesso, ou não terem podido manter-se, ao andor do poder. Só isto já nos deveria fazer desconfiar porque decerto acham que, fosse o sistema outro, e não teriam sido maltratados. Mas um módico de senso deveria fazê-los ver que o sistema que recomendam não os recomendaria necessariamente a eles aos olhos do eleitor; nem há nenhuma garantia de que não trocaríamos as não-pessoas que agora elegemos por advogados do queijo limiano, demagogos sortidos e tresloucados de vária pinta.
A inspiração em sistemas alheios é uma velha pecha nossa, como o é a ideia de que a mudança da arquitectura do regime arrasta consigo a mudança da realidade da nossa tradição histórica, do nosso atraso atávico, da falta de competitividade do país, do nosso perfil sociológico e do peso das nossas circunstâncias geopolíticas. Esse Reino Unido cujos parlamentares, directamente eleitos em círculos uninominais, invejamos, não tem na casa da democracia representantes de pequenos partidos, isto é, não representa directamente correntes demasiado pequenas do pensamento político; e nos Estados Unidos, o outro grande país onde a democracia não é um enxerto, pode o titular do poder executivo ser eleito sem uma maioria absoluta de eleitores e os senadores da câmara alta representam os Estados federados, independentemente do seu número de votantes. Ou seja, são democracias “imperfeitas”, excepto pelo detalhe de funcionarem satisfatoriamente. Não agradam, é claro, a britânicos e americanos, sobretudo aos derrotados em cada eleição, mas não lhes ocorre mudar o sistema. Talvez por intuírem que a democracia é um sistema imperfeito que desagrada a quase toda a gente, e a ditadura um em que quem manifestar o seu desagrado vai preso.
As principais campainhas de alarme para este desconforto são o abstencionismo nas últimas eleições (ligeiramente acima de 69%, cerca de 3 pontos acima das anteriores europeias) e a patente derrota da chamada direita. Não costuma ser incluído no perímetro da “crise” o desastre do PCP, que perdeu 188.000 eleitores, decerto porque, destes, 176.000 foram para o BE e portanto julgar-se-á que ficou tudo mais ou menos na mesma. Porém, o PCP era apenas um tumor estável da democracia, com o qual o corpo social se habituou a lidar; e o BE é suficientemente equívoco para arrastar atrás de si fatias do eleitorado que acreditam que há um país rico e justo à espera de ser decretado, e isto quando o resultado líquido das políticas bloquistas só pode ser uma venezuelização europeia do país. Donde, é duvidoso que tenha havido qualquer progresso, mas adiante.
Sucede que os eleitos para o PE vão para lá defender subsídios para o país e vantagens para eles e os nossos emigrantes, e isto qualquer que seja a sua origem partidária. Donde, não fazia realmente diferença que fosse eleito o Chico ou o Manel, a menos que as eleições fossem utilizadas como uma mega-sondagem à popularidade do governo PS. Sobre isto, o eleitorado disse o seguinte: como o PSD actual aprecia boas contas e é europeísta, e o governo PS é europeísta e aprecia boas contas, não vale a pena mudar. E disse-o claramente, com uma votação cuja abstenção só foi percentualmente maior do que nas eleições similares anteriores porque o universo eleitoral foi engordado com um milhão e oitenta e três mil eleitores residentes no estrangeiro, que naturalmente se abstiveram (o número de votantes, entre 2014 e 2019, cresceu mais de 30.000) Há uma percepção difusa de que algo vai mal no SNS e nos outros serviços públicos, e começa lenta, muito lentamente, a passar para a opinião pública a ideia de que o país não cresce, mas isso não chegou para aconselhar a mudança.
Pois não, não cresce, nem pode crescer com o PS a taxar tudo o que mexe, a empurrar a dívida com a barriga, a engordar o Estado com a compra de votos e benefícios o mais barato que possa ser mas ainda assim alguma coisa, e a recobrir o conjunto com uma eficaz propaganda que a comunicação social compra.
O papel da direita, assumidamente difícil porque o regime democrático criou e mantém uma maioria sociológica de esquerda, acoitada no Estado e no sistema de pensões (ideia que se ausentou do comentariado mas não, infelizmente, da realidade) deveria ser martelar esta ideia do atraso relativo até à náusea, indicando os caminhos da redenção crescimentista. Tem feito isto? Não, tem tentado pescar em águas despesistas que não são suas (como no caso lamentável da contagem do tempo de serviço dos professores), tem corrido atrás de todos os descontentamentos e todos os tiques grotescos e pequenos ilícitos de uma governação oca, corrupta e inepta, mas sem um trabalho sério, o mais das vezes, sobre a reforma do Estado, que tem de emagrecer, a fiscalidade, que tem de baixar, e sobretudo salientando as diferenças entre o PSD e o CDS como se algum dos partidos, isolado, guardasse em si um potencial de vitória e não precisassem os dois de um programa mínimo comum.
Se julgam que algum destes males se vai remediar com a reforma das leis eleitorais, boa sorte lá com isso. A terem sucesso, depois de consumirem energias na empresa e na guerrilha que gerará, descobrirão daqui a uns anos que temos uma democracia quase perfeita, a par de um produto por cabeça igual ao da Roménia. Já faltou mais.
Calhou ouvir na SicN a entrevista do Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais sobre a escandaleira de ontem. Os secretários desta pasta são desde há uns anos figuras invariavelmente sinistras, não tanto por uma qualquer inevitabilidade na natureza das funções mas porque no Fisco, mais do que em qualquer outra área, se constata o nível demencial a que chegou a estatização da vida em sociedade, até que ponto se tornou um Estado dentro do Estado, o carácter inquisitorial daquele departamento e, finalmente, a negação, em que hoje vivemos, do Estado de Direito. Negação tão gritante que o cidadão que calha ser apanhado, com boas ou más razões, na teia extorsionária do labirinto fiscal, ou paga se puder ou, se não puder, pode ver a sua vida transformada num inferno.
Isto é assim agora; e não era assim no tempo do Estado Novo, que respeitava as formas, a legalidade e a modéstia do Poder em tudo que não pusesse em causa o regime. Por exemplo, o exercício da liberdade de opinião podia pôr em causa o regime, e por isso não era tolerada; a organização corporativa e hierárquica da sociedade implicava um tipo de respeito pelas autoridades que hoje, felizmente, já não é exigido nem exigível; a população, sobre a escolha de quem a pastoreava, não tinha nada a dizer, nem periodicamente nem em momento algum; e as infracções ao perímetro de segurança das instituições, mesmo que apenas potenciais, mesmo que ligeiras, podiam acarretar consequências gravosas para a liberdade e até, em casos extremos, a vida.
Com estes caveats, porém, o Estado Novo era, fiscalmente, um estado de direito, coisa que o estado democrático, fiscalmente, não é.
Regressando à entrevista do SEAF, o homem (que diabo: precisava de ter uma barba mal amanhada e ser repugnantemente melífluo?) prometeu que estas acções policiais, naqueles termos, não se voltam a realizar; que a iniciativa não tinha sido decidida centralmente; e que vai ser feito um inquérito para saber o que se passou, mas que ninguém será punido porque os funcionários fiscais são inexcedíveis de zelo e dedicação. E não ficou claro, mas poderia ter ficado se os jornalistas não fossem canhestros, que a verdadeira razão porque o atropelo foi suspenso foi o clamor nas redes sociais; e qual o destino dos quatro autuados (dois, parece, por dívidas no âmbito da SCUTs ou lá o que é) que tiveram o azar de passar naquela rotunda à hora em que lá estavam os 20 (!) elementos da AT e os 10 (!) da GNR.
Sobre o abuso de a GNR mandar parar cidadãos não por qualquer razão ligada a segurança rodoviária ou por suspeita plausível da prática de crimes disse nada, como se a polícia tivesse o direito de genericamente imobilizar cidadãos para apurar se devem alguma coisa; sobre a penhora de veículos para pagamento de dívidas de valor substancialmente inferior moita carrasco, decerto por achar que o Estado não quer realmente os veículos, quer é exercer coacção, e portanto vale tudo; sobre a necessidade de as relações entre a autoridade tributária (a mudança de nome de Direcção-Geral das Contribuições e Impostos para Autoridade Tributária já indiciou o pendor autoritário que esta gente alberga na cabeça) se regularem pela lei e não pelo arbítrio e inspiração de um qualquer poder central, silêncio; e sobre o nº 3 do artº 268º da Constituição, decerto o senhor SEAF acha que a Constituição só poderia ter entrado em vigor se tivesse sido transcrita numa circular aos serviços que ele, ou os antecessores, tivesse assinado.
Sucede que a indignação que, como um rastilho, se espalhou nas redes, não tem razão de ser: já agora, e desde há muito, o Fisco (e não apenas o Fisco, também a Segurança Social) vai às contas bancárias, sem aviso porque se houvesse encontrava a conta desnatada, e pilha-as. E não adianta provar ao banco que a dívida (aliás, com frequência, imaginária, como se prova com a quantidade de vezes que o Estado perde em impugnações) está paga, tem que ser a autoridade a, com majestade e vagar, levantar o interdito.
Se levantar. Porque, quer a dívida exista, quer não exista, para a impugnar é preciso pagar ou apresentar garantias.
Isto é extraordinário: o cidadão ou a empresa acusados de serem caloteiros têm, primeiro, que pagar, dado que as garantias nem sempre existem ou, existindo, têm custos associados. Se tiverem meios para ir a tribunal (se não tiverem são pura e simplesmente esbulhados), e garantias para apresentar, nem sabem nem é possível saber quando e se obterão ganho de causa, o que leva anos. E, se obtiverem, têm ainda a via dolorosa de executar a sentença contra o mesmo Estado que não dá meios aos tribunais fiscais, daí os atrasos, e incentiva com prémios os seus funcionários a levantarem “autos de notícia” com ou sem fundamento são, e com frequência baseados em presunções delirantes. Todos, secretários de Estado, directores-gerais, inspectores, se felicitam ou são felicitados pelo resultado, medido pela quantidade de multas e volume das exacções. E o cidadão, que ignora isto, acorda espavorido com uma operação STOP numa rotunda em Valongo, como se o que lá se faz tenha alguma diferença, salvo ser na via pública, em relação ao que a AT faz todos os dias.
Quando o cidadão ou a empresa (e uma empresa são também cidadãos, coligados para um fim) são impedidos de se defender e perdem a fazenda, o caso é muito menos grave que a liberdade ou a vida. Mas é uma diferença de grau, não de essência: em ambos os casos as pessoas concretas que ocupam os lugares de comando político no Estado estão a defender os seus lugares, que ocupam ilegitimamente quando não são eleitos e que ocupam com duvidosa legitimidade quando, sendo eleitos, compram votos com distribuição de benefícios obtidos por pilhagem.
Estes abusos operam-se sob o piedoso mote de “combate à evasão fiscal” e o SEAF, na entrevista acima referida, não deixou de repetir o mantra, falsíssimo, de que se houver quem não pague os outros pagam mais, quando o que a experiência mostra é que pague quem pagar o que pagar, o Estado gasta sempre tudo, e mais; e insinuando que, se o Estado diz que o cidadão deve, então é porque deve, sem mais.
A força desta ideia, isto é, de que não há limites para o tal combate e em nome dele se podem atropelar todos os direitos, criar uma legislação impenetrável e volúvel, bafejar com estatuto de excepção os funcionários, e inverter o ónus da prova sempre que um deles, mesmo incompetente, mesmo ignorante do direito aplicável, mesmo sabendo de contabilidade apenas rudimentos, se lembre de inventar ilícitos, com a tranquila certeza de que, se uns anos volvidos o tribunal vier a dar razão ao ofendido, nem os prémios que tiver empochado serão restituídos nem o prestígio que tiver angariado junto das chefias sairá beliscado.
E o abismo em que, em nome da inveja e do ódio ao rico, já caímos, é tão fundo que até mesmo o meu partido, que a um tempo se considerou a si mesmo o partido dos contribuintes, nomeou para SEAF um militante que não reverteu um único dos abusos e criou um prémio de automóveis a sortear entre os contribuintes que se prestassem a ser fiscais civis do Fisco. Baldado esforço: não ganhou o respeito da esquerda por isso e perdeu o deste militante. Não devo ter sido o único.
O Estado Português não é fiscalmente legítimo, e quem lhe subscreve os processos merece o desprezo das pessoas de bem. O cidadão comum, claro, não acha isto, porque julga que beneficia. Até ao dia em que descobre que o socialismo é insaciável: tira aos outros para nos dar a nós até ao dia em que é à nossa porta que vem bater.
O eleitorado borrifou-se para as eleições europeias: não sabia quem eram os candidatos, quem eram os deputados que lá estavam, o que fizeram, e o que vão fazer estes agora eleitos. Sabe difusamente que ganham bem; e que nenhum dos futuros deputados é contra a Europa dos subsídios. A Europa dos subsídios é boa, como é a dos empregos quando falham aqui, a dos empregos mais bem pagos quando aqui são mal, e, para a juventude, o Erasmus. O Euro deixou de ser assunto porque criou a sua própria realidade: agrada à direita porque obriga a disciplina orçamental; agrada ao PS porque, fazendo da necessidade força, descobriu que mesmo com ele e a disciplina a que obriga pode ganhar eleições; agrada ao eleitor porque tem no bolso a mesma moeda que o alemão ou o francês; e, desagradando ao Bloco, e mais ainda ao PCP, nenhum dos dois quer, por razões tácticas, insistir num cavalo perdedor, sendo que o Bloco, por estar a caminho do poder efectivo, tende a ser cada vez mais europeísta e institucional, guardando o esquerdismo para as cores do arco-íris.
Não havendo nada para discutir sobre o “parlamento” europeu, discutiram-se as trincas caseiras. Mas nenhum dos candidatos o era para governar, e todos foram eco das posições dos respectivos partidos sobre a governação do país, razão pela qual o que estava em jogo era apenas uma mega-sondagem. À qual os consultados, à altura de quase 70% (provavelmente menos: ninguém afiança que os cadernos eleitorais estejam expurgados de mortos. O que é estranho, num país onde a máquina do Estado, se quiser, pode apurar quantas pessoas sofrem de hemorroidal, mas não é capaz de actualizar a lista de cidadãos eleitores) disseram não querer responder.
O PCP continua a perder eleitores (quase 200.000), e o herdeiro natural dos votos perdidos é o Bloco. Entende-se: as posições do PCP dentro da geringonça mal se têm distinguido das do Bloco. Como as credenciais democráticas dos comunistas inexistem, e as bloquistas parecem existir, além do que tem uma retórica mais moderna, fracturante e flexível, ao PCP restaria ser o depositário da esperança de uma sociedade alternativa. Se tudo o que tem para oferecer é o apoio a funcionários públicos e pensionistas, agora que até os sindicatos se atrevem a ignorá-los porque sabem que no essencial o PCP está amarrado ao que o governo decide, votar comunista não vale a pena. A actual direcção do PCP fez um gambito errado, que o partido seguiu por causa do centralismo “democrático”. E só não é garantido o abençoado enterro desta associação de malfeitores porque não é impossível que mudem de orientação, sobretudo se uma futura geringonça incluir o Bloco no governo mas não o PCP (se incluísse também o PCP, o suicídio confirmar-se-ia – comunistas não resistem a experiências governamentais, a menos que liquidem os compagnons, a democracia e a alternância).
Nem o PSD nem o CDS perderam votos em relação a 2014 (pelo contrário, ganharam um pouco mais de 20.000; se incluirmos a Aliança, o Chega e a IL, que presumivelmente integravam a PàF, o ganho é de cerca de 144.000). Porém, a base de cálculo é diferente porque há quase um milhão de novos eleitores. Donde, a chamada direita teve uma clara derrota.
Que fazer com a derrota? O que há a fazer é evidente, já que os eleitores que faltam para derrubar a situação estão em casa, pelo que é preciso ir lá buscá-los.
O busílis é como. Rui Rio, no inacreditável discurso de derrota da noite eleitoral, disse isto: estou convencido de que, se fizer mais do mesmo, o eleitorado que agora me mandou bugiar mudará de opinião daqui a três meses. O homem é teimoso, mas nem ele acreditará numa tese destas, pelo que, traduzindo, afirmou que conta perder as eleições legislativas mas ir para o governo na posição de sócio júnior, fazendo então as reformas de que o país precisa, com o amigo Costa.
Costa, porém, não sabe o que são reformas, mas sabe o que lhe convém para preservar o seu couro político. Fará portanto as alianças que forem necessárias para continuar a andar de carro com motorista e ter o poder de distribuir lugares no aparelho de Estado. E como, na sua abissal ignorância sobre o que conviria fazer para pôr o país a crescer seriamente, guarda instintos de esquerda, preferirá alianças com as maluquinhas do Bloco ou os comedores de tofu do PAN, caso em que, de reformas, podemos contar com a extinção das touradas, a modificação dos menus das cantinas escolares e o reforço da agenda LGBTI nos manuais do ensino.
Se viesse a aliar-se, por um bambúrrio qualquer do destino eleitoral, com Rio, é provável que alinhasse na loucura da regionalização que, longe de diminuir o peso do Estado, aproximaria este do cidadão, mas em veste da multiplicação de terreiros do Paço pelo país, de tiranetes pela província, e de publicanos a esmifrar o que resta de rendimento disponível.
Os eleitores que ficaram em casa poucas razões terão portanto para se incomodarem a dar o seu voto ao PSD nas legislativas. E no CDS?
Este partido nunca ganhou eleições e nasceu tarde para acaparar lugares no aparelho de Estado – já estavam ocupados. Quando chegou ao governo, foi como ancilar do PSD. Desde que Rio elegeu, como potencial aliado, o PS, o papel do CDS deveria ser falar, além do seu eleitorado tradicional (católicos, social-democratas que se autodescrevem como democratas-cristãos, conservadores, liberais e reaccionários sortidos) àquele do PSD que Rio desamparou.
Fez isso, mas sem consistência e com uma pecha triunfalista (nós vamos ultrapassar o PSD) que nem era realista nem podia cair bem. E ao mesmo tempo, como uma galinha sem cabeça, desatou a correr atrás de todas as causas em que houvesse descontentes, tomando-lhes as dores sem cuidar de saber que quaisquer posições, para serem credíveis, precisam de ter, antes de mais, autenticidade. Foi o caso com os professores: o CDS não pode, na oposição, defender coisas diferentes das que defenderia se fosse governo, porque o eleitorado não engole a patranha.
No lamber das feridas, é provável que as várias capelas dentro dos partidos derrotados reivindiquem para si a exclusão das outras, com o propósito de ganhar eleitores com consistência e unidade de propósitos. Puro engano: aos partidos de poder a consistência e unidade são fornecidas pela direcção, que todavia exclui da decisão sem excluir do partido – as tendências fazem parte da vida dos partidos que querem ser grandes. E é também seguro que as novas franjas de eleitores, sobretudo a miudagem que chegou hoje ao voto e traz a cabeça formatada pelas tretas do ambiente e da salvação do planeta, precisam de uma resposta. Mas essa resposta, mesmo que não muito convincente, não pode ser a mesma da esquerda, que consiste em mais leis, mais organismos, mais propaganda e mais despesa pública. Porque, nisto como no resto, o eleitor prefere os originais aos sucedâneos.
Nada mudará, provavelmente, nos três meses que faltam até às legislativas. E não é impossível que a provável vitória do PS se venha a revelar pírrica, porque o aparelho de Estado está anquilosado por falta de investimento de manutenção, a economia não cresce senão em doses minúsculas, o Estado Social dá mostras de esgotamento, e as contas públicas não melhoraram a ponto de se poder dizer que o país está preparado para resistir a uma crise.
Talvez portanto esta derrota seja menos má do que parece, porque da introspecção que vai provocar pode nascer uma melhor direita. Uma que ache que é possível demonstrar ao eleitor que se pode fazer melhor não com versões diferentes das mesmas políticas mas com políticas alternativas; e que, tendo desaparecido das análises políticas a maioria sociológica de esquerda, mas não tendo desaparecido da realidade nem do grosso das mensagens subliminares da comunicação social, e sendo a lei eleitoral o que é, o melhor caminho para quem tenha saudades do futuro é a reedição da PàF.
Não com Rio, que é um cadáver adiado; mas decerto com a Iniciativa Liberal, e talvez com a Aliança.
Anda por aí um movimento (o 5.7), que voluntariamente submergiu durante a campanha. Que reemerja, porque esse é o caminho.
O PSD e o CDS, que constituem o que em Portugal se chama “a direita” não são hoje, nem poderiam ser, o que eram quando nasceram. O primeiro nasceu para impedir que o revanchismo anti Velha Senhora descambasse numa Cuba europeia; e o segundo para atrair franjas de antigos situacionistas, católicos de vária pinta, embriões de liberais e reaccionários sortidos que convinha arregimentar a benefício do jogo democrático. Mas a Velha Senhora já quase ninguém a viveu e conheceu; e o que hoje se descreve como extrema-direita, entre nós e no exterior, nem remotamente põe em causa o regime democrático, apenas defende soluções públicas que não agradam ao complexo jornalístico-situacionista actual, feito de um socialismo mole regado a impostagens absurdamente altas, engenharias sociais fracturantes, Estados obesos, clientelas imensas e dirigismos bem-pensantes.
Para quem não viveu, é difícil imaginar as circunstâncias deste parto e as juras, sentidas ou hipócritas, que foi preciso fazer, sobretudo o CDS, de respeito pela democracia socialista, pela revolução de Abril e os seus capitães e, finalmente, pela Constituição que consagrou a sociedade sem classes. A qual, aliás, o CDS, com a coragem e coerência que o PSD não teve, não aprovou. Hoje, semelhante destino colectivo apenas permanece no preâmbulo, que os sucessivos revisores constitucionais deixaram incólume.
Esta ternurenta preservação, em que pese aos realistas que entendem que, por não ter conteúdo jurídico substantivo, é inócua, é pelo contrário sintomática: indicia o pecado original de o nosso xadrez partidário ter sido inquinado pela defesa do socialismo.
Mas foi, e está. A sociedade portuguesa actual, no score eleitoral absurdo de comunistas e radicais de esquerda, na promiscuidade do Poder com o grande capitalismo, na esmagadora camisa de forças regulatória, fiscal e interventiva que atrapalha o pequeno, e na opressiva opinião publicada ou televisionada, ainda é tributária dos primeiros anos do regime e do papel que então coube ao PS de partido-charneira.
É certo que o mesmo PS que arrastou sempre os pés para rever a Constituição, aceitando a cada nova revisão o que rejeitou na anterior, evoluiu recentemente para o respeito das contas públicas equilibradas. Uma cambalhota que contradiz o passado, as promessas eleitorais, e as profissões de fé no efeito multiplicador da despesa pública. Com isso roubou o principal capital político do PSD tradicional, reduzindo-se agora a destrinça a questões adjectivas de diferenças de carácter e de propaganda (Costa mente com facilidade e naturalidade, e conta com uma comunicação social atenta, veneradora e obrigada), rigor de contas (boa parte do alegado sucesso de Centeno assenta no empurrar de problemas para o próximo governo, quando não vindouros mais longínquos), grau de nepotismo (a colonização do aparelho de Estado por familiares e amigos atingiu com o PS níveis sem precedentes) e pouco mais.
É certo que o PSD de Rio não é o mesmo de Passos Coelho. E não é decerto um acaso o ódio virulento e persistente que a esquerda em peso dedica a Passos, e se manifesta sempre que este emerge do silencioso exílio a que com dignidade se remeteu. Passos, aliás, abundou nos idos de 2011 em declarações de índole liberal, defendeu a certo ponto, para geral escândalo, a revisão da Constituição, e deu provas como governante de não se impressionar com bonzos do capitalismo caseiro. É certo que nada ou quase fez pela reforma do Estado, mas não sabemos se no apertado colete de forças da troica havia espaço, tempo e imaginação para reformar fosse o que fosse, donde se lhe deu o benefício da dúvida. Além do que a reforma do Estado tropeça sempre nas imensas clientelas a ofender, numa opinião publicada hostil, e numa opinião pública formatada na dependência do Estado.
Passos, porém, e o PSD de Passos e Morgado, não são candidatos nestas eleições nem, presumivelmente, nas próximas – Rio sim. E, admitindo que as sondagens têm um mínimo de credibilidade (que um máximo não têm, estou certo), compreende-se que o eleitorado, que é conservador, não vá correr atrás de um socialista novo quando tem um velho à mão, que já deu provas (mais retóricas do que reais, mas a retórica conta) de se preocupar com os pobres. Razões por que, se eu fosse laranjinha, orientava desta vez o meu voto para um valor menos duvidoso, já que melhor do mesmo não chega – é preciso outra coisa.
Na outra coisa há agora a Iniciativa Liberal, que a comunicação social tem com zelo ignorado, como não ignorava o Bloco nos seus primórdios. Sucede porém que a IL, se arrebanha parte do que melhor há à direita, tem a liberdade de não se preocupar com a exequibilidade do seu programa porque realisticamente sabe que não chega a poder executá-lo. Portanto, o seu natural objectivo é difundir as boas ideias lá no terreno onde elas podem medrar, isto é, com certeza o CDS e em parte o PSD. As eleições são instrumentais para este mais do que legítimo propósito.
Na Iniciativa Liberal não está ninguém que conheça e de quem verdadeiramente não goste, e conheço muitos, e moram muitas ideias que subscrevo. E no CDS não apenas há gente por quem não morro de amores, como há ideias, e algumas práticas, no passado e no presente, que de liberal têm nada, e de fradesco ou social-democrata muito.
Resta todavia que a boa direita sempre morou no CDS, ou num PSD que agora está em banho-maria. E o país, que já perdeu muito por não lhe ter dado mais força, não tem nada a ganhar em enfraquecê-lo. A Iniciativa Liberal atrai, mas é como a amante nova, jovem, álacre e um pouco destravada – trocá-la pela legítima não é exactamente a melhor coisa que um conservador pode fazer.
Razões por que, no domingo, voto CDS.
PS: Não falo da Europa para não dar a impressão que levo a sério a ficção das eleições europeias. Estas eleições são uma sondagem em ponto grande. A mim basta-me para escolher.
A 200 metros do meu portão passa uma ciclovia, agora ligada à, já antiga, que vai até Fafe, utilizando a quase totalidade do leito do caminho de ferro que foi desactivado em 1986 e que estava ao serviço desde 1907.
O novo troço foi inaugurado em Setembro do ano passado, com a devida solenidade, isto é, presumo, com o discurso de circunstância da nulidade que sobraça(va) a pasta dos transportes e as eructações aldeãs do edil local.
“O objetivo desta intervenção é generalizar o uso da bicicleta na vida quotidiana dos vimaranenses, transformando-a num meio de transporte e não somente num veículo de lazer ou de desporto”, diz a notícia e pensam decerto as luminárias que promovem estas modernices.
Anteontem, com um sol radioso, fui investigar e caminhei por um pouco mais de 6 km, isto é, até à actual estação ferroviária de Guimarães, onde hoje acaba a linha que vem do Porto. É um bonito passeio porque não houve ainda tempo de poluir a paisagem – a linha estava protegida por uma zona non aedificandi e não havia particular apetência para construir perto do barulho e fumarada dos comboios. Veem-se, a nível quase sempre inferior porque o trajecto é numa encosta, novas urbanizações, geralmente com prédios abomináveis à la Souto Moura, mas sem bandalheiras e lixo no entorno, e com acessos e parques de estacionamento razoáveis.
A novel pista tem um piso impecável, irrepreensivelmente pintado num bonito bordeaux, com sinalética esclarecedora e abundante, e postes de iluminação negros, de design contido. O alcatrão acaba em guias de ferro discretíssimas e bem colocadas, as bermas têm largura uniforme e uma cuidada gravilha. Em suma, a execução é excelente.
A meio, parei numa esplanada de um café moderno, para um sumo de laranja que não havia, substituído por um fino de cerveja morta, um lanche ressequido e dois cigarros.
Quer dizer que o passeio durou pr’aí uma hora e meia. E neste espaço de tempo, a meio da tarde de um dia esplendoroso, vi três ciclistas.
A ideia de que numa cidade onde é tudo a subir e a descer, onde nos longos meses de Inverno faz um frio de rachar não tanto porque as temperaturas sejam muito baixas mas porque há vento e chuva, e onde no Verão as temperaturas sobem acima dos 30º, possa haver um número significativo de pessoas que abandonem o carro, ou a motoreta, ou os transportes colectivos, a benefício da mitificada bicicleta, é um absurdo.
Absurdo que só se explica porque correm rios de dinheiro da Europa nos cofres municipais, e fortes correntes de ar pejado de alucinogénios entre as orelhas dos autarcas.
Estas brincadeiras custam milhões. Os milhões que não existem para coisas tão simples como tampas de saneamento à face dos pisos das estradas e arruamentos, e não salientes ou afundadas, ou acessos decentes e bem mantidos a zonas residenciais ou industriais. Isto numa longa lista de aplicações alternativas socialmente mais úteis de recursos públicos, mesmo dando de barato (eu não dou, mas não é disso que aqui trato) que diminuir impostos não é razoável e que a União Europeia é tão estúpida, e a nossa diplomacia tão impotente, que dinheiro só há para torrar em fantasias.
É de fantasias que se trata: jamais a população aceitará, se tiver outro remédio, que a medida do progresso é a deslocação por tracção animal, que tinha ficado lá atrás, até meados do séc. XX. E por muitos partidos verdes ejaculando propaganda pró-ambiente de China maoísta, injunções de médicos fascistas que esqueceram o juramento de Hipócrates para o trocar pela engenharia de costumes sadios, e esquerdistas sortidos que não descansam enquanto não construírem um homem novo, o raio da pista continuará deserta.
Estranho caso: A certo ponto quase toda a gente concordou que a construção das autoestradas sem tráfego assinalável foi uma malbaratação de recursos, e que as externalidades positivas foram uma invenção de políticos venais ou inconscientes. À escala local, as ciclovias não são um escândalo menor. Abençoado embora por quanto idiota sabe, melhor do que as pessoas, o que a elas convém, e ainda que as mesmas pessoas, por julgarem que o dinheiro não lhes sai do bolso, achem que as ciclovias são uma óptima ideia – para os outros.
Aquando da Comissão Parlamentar de Inquérito à gestão do BES o país pasmou com a litania de trafulhas e mentirosos que viu desfilar para explicar o buraco que ainda andamos a pagar. Aquilo era gente paga a peso de ouro, cobertos de condecorações alguns deles, e que durante décadas povoou os jornais de economia e as revistas do beautiful people.
Ricardo Salgado, o mais consistente dos aldrabões, ficou definitivamente marcado como o epítome do vigarista-mor e está ainda enredado, e presume-se que até que morra, numa floresta de processos judiciais que se vão arrastando sem fim à vista.
Se for a um lugar público é seguro que pode contar com uma pateada e desacatos de reais ou imaginários ex-clientes lesados pelas moscambilhas que engendrou para evitar a débâcle. E os vexames a que se exponha contam com o aplauso unânime dos indignados, que são toda a gente. Esta aliás, se consultada, dirá furibunda que todas aquelas personagens deveriam estar na cadeia, o juiz que os condenasse atirar ao mar as chaves das celas, e os bens que ainda detenham, por si ou interpostas pessoas, confiscados a bem do interesse público.
O país governado pela opinião pública, ou o que dela se adivinha nas redes sociais, é um lugar violento, repassado de crime e castigo; e os procuradores da populaça, na nossa democracia representativa, fazem o possível para satisfazer a sua clientela eleitoral abundando na indignação contra estes malvados, que expõem ao ridículo em inquirições públicas (não que os inquiridos precisem de ajuda – eles próprios alimentam o escárnio, com o expediente de não estarem calados, evidenciando o que lhes vai nas cabeças retorcidas e nas almas emporcalhadas).
A recente audição de Joe Berardo foi um clímax: a personagem exprime-se num português sumário, sob a desculpa de que é fluente em inglês, presume-se de apreciador de pintura, com toilette a condizer, é ingenuamente insolente na sua franqueza despudorada, e deixa de modo geral a ideia que nunca na vida terá ganho um cêntimo honestamente – uma bênção para os humoristas, que um exemplar destes, se fosse inventado, não seria credível. A gente chega a ponto de se esquecer que Berardo foi condecorado por dois presidentes da República, um deles com a reputação, provavelmente justa, de ter sido a mais proba das personagens que passou pelo lugar, que durante décadas foi apresentado como um exemplo de sucesso do capitalismo português, e que a colecção de lixo que juntou, sob conselho de um especialista metido a marchand, goza de sólida reputação nos cognoscenti de arte contemporânea, e de grande sucesso de visitas no edifício grotesco que Cavaco mandou construir para celebrar o seu consulado de dom Joãozinho Segundo europeísta.
Berardo disse, a dado ponto, que a operação com o BCP foi o “pior desastre da sua vida”. Foi. Sucede porém que, não fora o ambiente do tempo, e era desastre ao qual teria sido poupado. Porque Berardo foi induzido – a história, mais do que plausível, conta-a aqui o meu colega de blogue. Claro que, no processo, Berardo contava com gordas mais-valias, e estas eram a moeda de troca para servir de peão a Sócrates e à sua camarilha, que se faria pagar com nomeações de protegidos para lugares regiamente remunerados, adjudicações de obras faraónicas aos empreendedores do regime, e comissões pantagruélicas para ele e os outros capos – a ideia de que Sócrates pôde agir sem que as suas segundas e terceiras figuras nunca suspeitassem de nada pode ser, e é, engolida pelo eleitorado distraído com o futebol, que é quase todo, mas sofre de patente inverosimilhança.
Quer dizer que o depoimento de Berardo na Comissão de Inquérito nos pode ter dado uma incontrolável vontade de rir, mas disso só não viria mal ao mundo se estivéssemos conscientes de que estamos a rir de nós, porque o lugar do depoente deveria ser ocupado pelos que escolhemos, e continuamos a escolher, para nos pastorear, isto é, socialistas de vária pinta e feitio.
Foi assim com Berardo. E com Salgado, foi muito diferente? Convém lembrar que o Banco Espírito Santo, nacionalizado em 1975, só começou um atribulado processo de reprivatização em 1986, com o apoio de uma instituição francesa porque o capital se havia evaporado (os revolucionários de 1975 não tinham conseguido acabar com os pobres, que de resto era o seu objectivo secundário, mas tinham conseguido acabar com os ricos). O capitalismo hiperconservador e sólido da Velha Senhora foi substituído pelo capitalismo assente na dívida e na engenharia financeira, com grande sucesso – o BES chegou a deter mais de um quinto do mercado bancário, mais de dois milhões de clientes e o primeiro lugar no crédito às PMEs. Mas a crise de 2008 veio expor não apenas um gigante com pés de barro mas uma construção delirante de perdas ocultas numa floresta de empreendedorismos familiares sortidos, tudo num contexto de promiscuidades com o poder do dia.
Isto significa que Salgado pode ter sido um Ícaro financeiro a quem, por ter subido de mais, depressa de mais, derreteu a cera das asas. Outro o ambiente político e social, outra a supervisão, e a crise abalaria sem necessariamente destruir.
Resta saber se destes dois desastres se retiraram lições. Não retiraram, desde logo porque a condenação pública, e a virtuosa indignação que a acompanha, obscurece o facto de que nada, absolutamente nada, garante que desastres da mesma envergadura não se possam repetir. Porque ao condenar os autores materiais dos crimes, onde os há, sem curar de identificar quem devia ter sabido e não soube, quem devia ter agido e não agiu, para não falar de quem foi cúmplice no melhor dos casos por omissão, o que se está a fazer é criar as condições para que os insucessos se voltem a repetir.
Dir-se-á que, não existindo já praticamente bancos nacionais, o BCE se encarregará de garantir que na banca, doravante, vigarices e loucuras não haverá. É uma fé extraordinária: o pessoal decisório é o mesmo ou da mesma igualha, oriundo das mesmas coudelarias, e no crédito à habitação e ao consumo não há sinais sérios de mais prudência; os gestores continuam a ser remunerados principescamente, com descaso da existência ou não de ajudas do Estado, e com a passividade deste perante os patentes abusos na cobrança de serviços bancários a depositantes indefesos, como se houvesse alguma contrapartida na remuneração de depósitos; e na supervisão continua a mesma gente proveniente do meio supervisionado ou, pior, de uma Academia que recobre uma ignorância quase sempre fatal dos mecanismos da criação de riqueza com albardas doutorais frequentemente esquerdizantes.
Os americanizados, que são legião, julgam que com a reforma das leis penais e processuais, diminuindo os direitos dos arguidos e enchendo as cadeias de condenados, se resolve o problema. Como se, no sol terreno que lhes serve de farol, que são os EUA, houvesse falta de troca-tintas financeiros; e como se atropelos à separação entre património das pessoas singulares e colectivas (patentes no caso de Berardo) não implicassem, por extensão, a multiplicação dos abusos que, já hoje, a Autoridade Tributária e a Segurança Social praticam sob o piedoso nome de reversões.
Na próxima crise cá nos encontraremos, com outros protagonistas e histórias muito diferentes, com a secreta esperança de novos Berardos que proporcionem copiosas barrigadas de riso. E pode ser que, então, já haja meios para os trancafiar expeditamente, e lhes catar o que, real ou putativamente, tenham ao sol.
Costa, hoje, confessou-se “chocado” pelo “desplante” de Berardo, do mesmo modo e pelas mesmas razões que cristãos-novos iam assistir aos autos-de-fé da Inquisição – não fosse alguém julgá-los heréticos; e Marques Mendes, uma aguadeira do regime, resume bem: Berardo teve um “tratamento que parece privilégio”. Não faz porém as perguntas, nem as denúncias, certas: i) Quem lho deu, e porquê; ii) Onde estão as pessoas que estavam por trás dos paus-mandados que lho deram; iii) Por que acreditamos que as mesmas pessoas, isto é, Costa e a sua entourage, não são capazes de engendrar os mesmos desastres, sob outra forma porque as circunstâncias serão diferentes, mas com o mesmo pano de fundo de promiscuidade entre o Estado e a economia, que é a receita que julgam que convém ao país?
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