Segunda-feira, 9 de Julho de 2012

Clássicos do Gremlin: "O Monstro", por Cavaco Silva

 

 

Pensando no problema constitucional que o dr. Cavaco recentemente tomou a iniciativa patriótica de levantar, resolvi reler o seu famoso artigo "O Monstro". Fui à procura de gralhas. Não havia. Segue o texto.

 

«Na ciência económica há um modelo explicativo do crescimento das despesas públicas em que o estado é visto como um monstro de apetite insaciável para gastar mais e mais. É o modelo do Leviatão. São várias as razões apresentadas para justificar o apetite do monstro:

 

- os ministros estão convencidos de que mais despesas públicas trazem-lhes mais popularidade e votos, porque assim podem distribuir mais benesses e ser simpáticos e generosos com os grupos que comem à mesa dos orçamentos dos seus ministérios;

 

- os burocratas, os directores da Administração Pública, lutam pelo aumento das despesas controladas pelos seus departamentos, porque isso lhes dá poder, influência e estatuto;

 

- os grupos que beneficiam directamente com os gastos do Estado estão melhor organizados do que os contribuintes que pagam os impostos e pressionam os políticos para mais despesa pública;

 

- muitas pessoas pensam que os serviços fornecidos pelo Estado não custam nada, porque sofrem de ilusão fiscal e não se apercebem de que as despesas têm sempre de ser financiadas com impostos, presentes ou futuros.

 

Há indicações de que hoje, em Portugal, o monstro anda à solta, atinge um tamanho alarmante e está incontrolável. O orçamento para o ano 2000, em discussão na Assembleia da República, é a prova disso. As despesas públicas apresentam um crescimento enorme e correspondem a mais de metade da produção nacional no ano. Pensa-se, contudo, que a dimensão do monstro é ainda maior que a retratada no orçamento apresentado pelo Governo. Com efeito, muitas despesas públicas fogem ao orçamento votado pela Assembleia da República. Esta parte escondida do monstro não é desprezível, devendo atingir centenas de milhões de contos.

 

Por outro lado, é amplamente reconhecido que o crescimento das despesas do Estado tem alimentado desperdícios e não se tem traduzido em melhoria dos serviços públicos prestados à população. Repare-se, por exemplo, nos relatórios do Tribunal de Contas que têm sido divulgados, onde sobressaem as ineficiências e fraudes na utilização dos dinheiros públicos. O aumento da despesa pública tem servido, acima de tudo, para satisfazer o apetite voraz do monstro e alargar a sua camada de gordura.

 

Quer isto dizer que mais de metade da produção que os Portugueses realizam é hoje desviada para alimentar o monstro. Os benefícios do aumento das despesas do estado que resultam dos serviços públicos (como educação, saúde ou segurança) ou da redistribuição do rendimento são claramente inferiores aos custos que os indivíduos suportam através do pagamento de impostos.

 

Durante algum tempo, as forças políticas mais à esquerda apoiaram o crescimento das despesas do Estado, convencidas de que daí resultava uma redução das desigualdades. Essa ilusão foi destruída pelo fenómeno da globalização e da integração económica e financeira. A liberdade dos movimentos de capitais com o exterior e a concorrência fiscal entre os países fizeram com que o crescimento das despesas seja financiado principalmente com impostos sobre o trabalho e não à custa dos rendimentos do capital. Hoje não há dúvidas de que o crescimento do monstro destrói riqueza e agrava as desigualdades na distribuição do rendimento.

 

Penso que o Ministério das Finanças está consciente de tudo isto e está cheio de medo do monstro. Já o anterior Ministro das Finanças, no final do seu mandato, confessava, desalentado, que não tinha conseguido controlar o crescimento das despesas correntes do estado, porque dentro do Governo havia fortes lobbies a favor do monstro. A própria Comissão Europeia, no seu «Relatório sobre a Situação em Matéria de Convergência e respectiva Recomendação com Vista à Terceira Fase da União Económica e Monetária», salienta que Portugal foi o único país da União em que o monstro cresceu na caminhada para o euro.

 

Não tenho dúvidas de que alguns membros do Governo do actual Ministério das Finanças conhecem bem o perigo que o monstro representa para a economia nacional e é provável que o seu silêncio e olhar triste sejam não só um sinal de medo, mas também um apelo para que os ajudem a enfrentar a besta.

 

O próprio ministro confessou há dias que tinha adiado para o próximo ano o combate ao monstro. Não me surpreende esta atitude, porque eu próprio a tinha antecipado num artigo que tinha publicado no DN no início da presente legislatura, em que me pronunciava contra a decisão de reunir sob o comando de um só ministro as áreas das finanças e da economia. O retrato do monstro que emerge do orçamento para o ano 2000 é a demonstração inequívoca de que foi uma decisão errada.

 

Mas o apelo mais lancinante chega-nos da Senhora Ministra da Saúde: «Mais dinheiro para a saúde só piora a situação do sector.» A Senhora Ministra sabe do que fala, conhece o monstro, pois foi Secretária de Estado do Orçamento e é uma reputada especialista de finanças públicas.

 

No ponto em que nos encontramos, só os partidos da oposição podem responder a estes apelos angustiantes, mas igualmente corajosos, e ajudar o Ministério das Finanças a enfrentar o monstro. Não devem deixar de fazê-lo, porque a situação é grave. Os interesses meramente partidários devem ficar de lado. Deixar o monstro continuar à solta é contribuir para destruir a riqueza nacional, prejudicar o crescimento económico do País, agravar as injustiças e impedir que o nível de vida dos Portugueses se aproxime da média europeia. A urgência em conter o crescimento das despesas do Estado sobreleva tudo o mais.

 

Há três contributos que a oposição pode dar para ajudar o Ministério das Finanças:

 

- votar contra o aumento da carga fiscal que o orçamento para o ano 2000 inclui, por forma a reduzir o fluxo de combustível que alimenta a fúria do monstro;

 

- impedir que as receitas das privatizações sejam utilizadas para financiar as despesas públicas, não tanto porque isso seja ilegal face à legislação portuguesa e comunitária, mas para impedir que o monstro, para além de devorar mais de metade da produção nacional, engula também património acumulado ao longo dos anos;

 

- pedir ao Senhor Ministro das Finanças que elabore um novo orçamento, dando-lhe a garantia de que pode contar com o apoio dos partidos da oposição no combate pelo emagrecimento do monstro. O ministro sentir-se-á então com mais força para desembainhar a espada e cortar-lhe a camada de gordura, eliminando alguns desperdícios nos gastos do Estado. Deve exigir-se que seja um novo orçamento, mas verdadeiro, sem artifícios contabilísticos e défices ocultos.

 

É perigoso adiar este combate. Se no primeiro ano da legislatura, e sem que ocorram eleições autárquicas, o Governo prevê que as despesas correntes do Estado aumentem a uma taxa dupla da do produto, o que não será quando nos aproximarmos das eleições?

 

Receio bem que o monstro atinja uma tal dimensão que o combate, depois, não se faça sem muitos feridos quer do lado do Governo, quer do lado dos partidos da oposição, sem falar nos estragos causados à economia nacional e ao bem-estar dos Portugueses.»

 

(Aníbal Cavaco Silva, in Diário de Notícias, 17 de Fevereiro 2000)

 

publicado por Margarida Bentes Penedo às 03:53
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