Ser de esquerda já foi aspirar a que toda a população tivesse condições de vida minimamente condignas, e eu sou de esquerda nesta definição, e já foi aspirar à tomada de poder pelos operários e camponeses, apoiados pelos soldados e marinheiros, orientados, naturalmente, por vanguardas esclarecidas, por exemplo pelos sociólogos do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, e eu sou anti-comunista primário nesta definição.
Já foi de tudo isto um pouco mas, hoje em dia, ser de esquerda, e de uma esquerda que vai das franjas mais radicais à esquerda do BE às franjas mais radicais do bloco central e mesmo do bloco de direita, incluindo personalidades como a economista Manuela Ferreira Leite ou o professor Freitas do Amaral, além dos habituais artistas do PS, de que se têm destacado o deputado João Galamba e o secretário de estado Pedro Nuno Santos, e seria injusto deixar de fora jornalistas como o Nicolau Santos ou académicos como o professor Artur Baptista da Silva, é defender a reestruturação da dívida.
O conceito "reestruturação da dívida" visa tornar o serviço da dívida menos penoso para o devedor, mas é vago e muito amplo, e tanto se pode aplicar a um país que invada outro e declare que já não lhe deve nada, um exemplo extremo de reestruturação unilateral, como a negociar com os credores alterações ao clausulado da dívida que, se, e apenas se, eles aceitarem, permitam atingir esse objectivo, por exemplo por redução de juros, ou alongamento de prazos, ou períodos de carência, ou alguma condição aceitável pelo credor que na circunstância específica do devedor lhe facilite a vida.
Quando se percorrem os caminhos da governação de esquerda não há pedra no caminho que, se virada, não tenha por baixo uma cassete da reestruturação da dívida a tocar. Normalmente em fantasias em que o poder negocial dos devedores é esmagadoramente superior ao dos credores, e os devedores lhes podem impôr condições draconianas em alternativa a simplesmente não a pagarem, e os devedores que não o fazem não o fazem apenas por serem traidores vendidos aos mercados ou à UE, ou meninos copo-de-leite.
Na prática, a relação de forças negocial fantasiada pela esquerda raramente se verifica, e verifica-se exactamente a oposta, ou seja, um devedor inicia um processo de renegociação da dívida por estar em dificuldades, dependente de crédito, e na mão dos credores que, à mínima desconfiança sobre a intenção do devedor de respeitar integralmente os contratos de dívida em vigor, deixam de lhe conceder crédito e viram-se para outros devedores que lhes ofereçam confiança.
Mas esta relação desfavorável de forças não impede que devedores façam reestruturações de dívida inteligentes, ou seja, que reduzam efectivamente os custos do serviço da dívida sem dependerem da aceitação pelos credores de alterações contratuais negociadas ou impostas. O governo Passos Coelho / Maria Luís Albuquerque fez reestruturações da dívida em larga escala a partir do momento em que, reestabelecida a confiança dos mercados na capacidade e na determinação do governo português em respeitar integralmente as responsabilidades assumidas com os credores, lhe foi possível recomeçar a financiar-se no mercado a juros mais baixos do que os de alguma dívida emitida anteriormente, nomeadamente a que tinha sido concedida ao abrigo do programa de assistência da troika e, mais especificamente, a que tinha sido concedida pelo FMI, com juros superiores a 4%. Como? Emitindo dívida a juros de mercado mais baixos, que chegaram a valores próximos dos 2%, para reembolsar antecipadamente dívida a juros mais altos, nomeadamente ao FMI. Os ganhos obtidos nesta reestruturação inteligente da dívida permitiram poupar centenas de milhões de euros em juros até à maturidade dos títulos de dívida que foram reembolsados antecipadamente, e a intenção do governo de então era reembolsar integralmente o FMI até 2017 e acumular ganhos esperados de 730 milhões de euros.
Estavamos no melhor dos mundos: a esquerda cumpria o seu paradigma de reestruturar a dívida, e a direita o seu, de a reestruturar com inteligência.
Mas tudo na vida é reversível, excepto a entropia, e o governo actual desistiu de reembolsar antecipadamente a dívida cara. Agora vai continuar a pagar mais de 4% de juros pelos quase 20 mil milhões de euros da dívida ao FMI, em vez de emitir dívida mais barata, se bem que cada vez menos mais barata, para os reembolsar. Reverteu a reestruturação da dívida.
Percebe-se bem porquê. Se o governo anterior se tinha esforçado por, e conseguido, reconquistar a confiança dos investidores e o acesso aos mercados de dívida, o governo actual virou a página da credibilidade ao reverter a austeridade, não com base na sustentabilidade económica da reversão, que, aliás, se esforçou por fazer recuar, mas na decisão política arbitrária de a reverter, ou seja, na demagogia. E, ao fazê-lo, afugentou investidores, na economia e na dívida, e o investimento privado encolheu, e a economia e o emprego deixaram de crescer, e os juros da dívida portuguesa deixaram de evoluir em linha com os dos outros países, nomeadamente a Espanha, mesmo com a instabilidade política que lá dura há meses, e passaram a divergir por excesso. Por outro lado, a almofada financeira, que chegou a encher os cofres com mais de 18 mil milhões de euros em Agosto de 2015, reduziu-se para muito menos de metade. Ou seja, o próprio governo não sente, nesta altura, a auto-confiança necessária para reembolsar dívida, e prefere ter o dinheiro na mão, mesmo que lhe saia, ou a nós, muito mais caro. Não quer mais reestruturar a dívida.
Ou seja, ao abandonar a reestruturação da dívida, a esquerda trocou o paradigma da reestruturação da dívida pelo paradigma da desreestruturação da dívida. À custa da factura de juros que, como sempre, é por conta dos contribuintes portugueses.
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