O vice-chanceler austríaco Heinz-Christian Strache, do Partido da Liberdade considerado populista de extrema-direita, demitiu-se, ou foi forçado a demitir-se, todos sabemos como os cordões sanitários são importantes na política, por ter sido apanhado numa gravação a propôr a um investidor russo a garantia de adjudicações de obras públicas desde que ele se disponibilizasse para adquirir o controlo accionista de um jornal e lhe alterasse a linha editorial para passar a apoiar o governo e "build a media landscape like Orban".
E a primeira dificuldade em sair deste primeiro parágrafo é a renitência de alguns, mais especificamente dos populistas de extrema-direita, em aceitar a classificação de populistas de extrema-direita. Enquanto extremistas como, por exemplo, os comunistas, se orgulham da sua orientação ideológica, e para muitos não há mesmo maior honra do que ser sepultado com a bandeira do Partido a cobrir o caixão, os populistas de extrema-direita parecem ter vergonha e ressentem-se de serem classificados assim, e estão normalmente dispostos a encetar discussões infindáveis para desmentir a classificação, que passam sempre pelo argumento que para os socialistas qualquer posição que não esteja de acordo com a deles é populista de extrema-direita.
A parte do populismo é de facto fácil de pôr em dúvida, porque qualquer definição de populismo passa pelo menos, para além da denúncia das elites corruptas instaladas no sistema, pela sua assumpção como um movimento de revolta das bases contra as elites, e os populismos são esmagadoramente liderados por clãs. Os Trump, os Bolsonaro, os Le Pen. Curiosamente, como os comunismos. Os Kim, os Castro, os dos Santos.
Mas abstraindo esse detalhe que põe em causa que os populismos liderados por elites sejam mesmo movimentos de bases, os populismos são fáceis de identificar, e toda a gente os identifica bem desde que não se perca a discutir a definição.
Já a parte da extrema-direita, que os revolta ainda mais por se considerarem a eles próprios no centro, no meio do povo, é mais fácil de demonstrar, até geometricamente. Se alguém considera todos os outros de esquerda está obrigatoriamente a olhar para eles da extremidade direita. Se um português vê socialistas em, para além dos partidos da extrema-esquerda incluindo o BE, do comunismo clássico do PCP, do socialismo dito democrático do PS, também na social-democracia mais ou menos liberal do PSD e do conservadorismo mais ou menos centrista do CDS, só pode estar à direita deles todos, só pode estar na extrema-direita.
O termo "populismo de extrema-direita" tem ainda uma vantagem apreciável que favorece a sua utilização, pelo menos coloquial. Independentemente de descrever fielmente ou não as características de quem refere, identifica muito bem quem refere. Quando se fala de populistas de extrema-direita toda a gente percebe de quem se está a falar, pelo que, independentemente de eles serem ou não populistas de extrema-direita, o termo tem precisão quanto baste para ser útil para os identificar.
Resignemo-nos então ao incómodo que lhes causa serem identificados como populistas de extrema-direita, e continuemos.
O que têm então de diferente os populistas de extrema-direita austríacos que foram apanhados em flagrante a propôr um esquema de corrupção a investidores russos dos populistas de extrema-direita franceses que não foram?
O exercício de funções executivas e o consequente acesso ao desvio de dinheiros públicos para benefício próprio. Os Le Pen estão na política há décadas, são talvez dos políticos franceses que estão há mais tempo instalados na política, mas nunca tiveram oportunidade, também pela exigência do sistema eleitoral francês, de ocupar funções executivas. Estão há décadas em todos os tipos de parlamento, dos locais ao europeu, mas nunca estiveram em maioria nem governaram.
Porque o sentido de ética, esse, foi sendo aferido ao longo da carreira política do clã, à medida das oportunidades que lhe foram sendo colocadas. Se nunca esteve em posição de adjudicar obras públicas, já esteve em posição de contratar assessores parlamentares ou de votar estando ausente do parlamento. E nunca se desviou de um padrão bem definido. Marine Le Pen contratou como assistentes parlamentares com o salário pago pelo Parlamento Europeu, ou pelos contribuintes europeus, que o Parlamento Europeu não dispõe de dinheiro que não seja deles, funcionários do partido a fazer trabalho para o partido, e por isso foi condenada pelo Tribunal Europeu ao reembolso de €298,497.87. O pai Jean-Marie Le Pen, e um clã é um clã, foi por seu lado condenado a pagar mais de 320 mil € pelos mesmos motivos. Quem sai aos seus não degenera. Marine Le Pen foi também apanhada num esquema de falsificação de votações no Parlamento Europeu onde depois de ela se ausentar o seu voto foi usado pelo colega de bancada holandês Marcel de Graaff.
Estes pecadilhos, mesmo assim envolvendo somas consideráveis de dinheiro, são tão graves como a promessa de adjudicação de obras públicas a troco de um favorecimento do partido do governante? Não, nem de perto. Mas podem ser o melhor que se consegue arranjar para um político corrupto que ainda não teve oportunidade de, ocupando funções executivas, subir de divisão para a grande corrupção. São um bom preditor do que fará o ladrão, uma vez lhe seja dada a ocasião.
E isto distingue em alguma coisa populistas de extrema-direita corruptos de políticos do sistema igualmente corruptos que também usaram dinheiro público para comprar jornais e canais de televisão, e também enriqueceram graças a gorjetas generosas por adjudicações de obras públicas? Não. Como a divisão do poder entre membros de clãs não distingue em nada os clãs de familiares de populistas de extrema-direita dos clãs de familiares, colegas de curso e de partido de políticos que já são do sistema. Como a recusa em fornecer informações a entidades de investigação independentes do executivo não distingue o boicote de Donald Trump às investigações às suas finanças pessoais ou às suas ligações com o governo russo do boicote de António Costa a fornecer às comissões parlamentares de inquérito informações sobre os créditos concedidos a amigos pelas gestões socialistas da CGD. Como a tentativa de capturar o controlo do sistema judicial, que pode facilitar tanto a vida a políticos corruptos, não distingue em nada governos populistas de extrema-direita como o de Viktor Orban de governos de partidos do sistema como o de António Costa. Políticos corruptos são políticos corruptos, qualquer que seja a sua orientação ideológica.
Mas este é justamente o ponto. Quando uma força política populista se afirma através da denúncia da falta de ética dos políticos do sistema, e há muitos com falta de ética, insinuando que têm todos falta de ética, já isto é uma falsidade absoluta, há que olhar muito bem para ela para lhe avaliar os sinais do seu próprio sentido de ética, descontar-lhe o facto de nunca ter sido posta à prova com oportunidades de praticar grande corrupção como eles foram, e perceber se tem um percurso de pequena corrupção, ou de suspeitas, ou de nepotismo, ou de recusa de cooperação com investigações independentes, ou de resistência à separação de poderes. Porque há grandes probabilidades de essa força, se acumular algum destes indícios, ser tão corrupta como os mais corruptos dos que já chegaram antes ao sistema e tiveram a oportunidade de demonstrar que são.
A palavra mais discutível no título não é afinal "populismo" nem "extrema-direita". É "ética".
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