O Mário Soares tinha todos os defeitos do mundo, e algumas qualidades. E tinha ainda características que podiam ser classificadas em ambas as categorias. Uma delas era a lealdade aos amigos. Era capaz de visitar ostensivamente um amigo condenado por um crime infame como a corrupção, ou mesmo preso, para lhe manifestar a sua amizade e a sua solidariedade, sem olhar a inconveniências nem custos de imagem. E relativamente a eles não se escondia atrás da presunção de inocência, mantinha, sim, uma convicta presunção de culpa sobre quem os acusava. O último de visitou nestas condições foi José Sócrates, quando cumpria a "pena" de prisão preventiva em Évora.
Mas o Mário Soares morreu, e sucedeu-lhe um partido liderado por gente com qualidades diferentes das dele e com uma dimensão, para o bem e para o mal, muito diferente da dele.
[Nesta cena de "Feios, porcos e maus", a família Mazzatella conspira para assassinar Giacinto organizando um almoço de reconciliação, ele tinha levado para casa uma nova namorada, a menina Iside, uma prostituta de peito felliniano e modos delicados de princesa, acalmando-lhe a apreensão sobre a reacção da mulher com a explicação que a mulher era muito compreensiva, bastanto bater-lhe, e explicando à mulher que a levava para viver com ele e dormir com eles, em que lhe serviram um delicioso macarrão confeccionado pela mulher Gaetana, temperado com os ingredientes que ela lhe enumera e a avó complementa com quatro pacotes de veneno para ratos todos no prato dele, comprados ao vendedor de banha da cobra Cesaretto, que ele desconfia que é amante da mulher e mesmo pai de uma das filhas, como revela numa frase lapidar "non è figlia mia, é figlia di puttana". Giacinto foge e sobrevive ao envenenamento aplicando a si próprio uma lavagem ao estômago na borda do rio com uma bomba de bicicleta, após o que incendeia a barraca e trepa a uma árvore para assistir ao incêndio a tocar metaforicamente cítara, na cena de salvamento da avó de que vos falei antes, e depois vende a barraca a uma família de ciganos tão numerosa como a dele, formalizando a venda num documento. Quando os ciganos se apresentam na barraca para tomar posse e mostram o documento, o documento desaparece e o diferendo sobre a propriedade do imóvel derime-se à pancada entre as famílias. Na penúltima cena do filme, e a última da comédia, chega a manhã à barraca, agora ocupada pelas duas famílias. A última cena conhecem todos, é a da Maria Libera a ir à fonte, já engolida pelo sistema, que foi mostrada na publicação anterior].
Depois de dois anos e meio a gerir com o instinto de sobrevivência que já é lendário o equilíbrio instável de ter o antecessor acusado de actos gravíssimos, e cada vez menos disfarçáveis, de corrupção, recorrendo até agora ao tradicional princípio de separação dos poderes, à política o que é da política, à justiça o que é da justiça, e ao inocente até prova em contrário, para escapar a tomar uma posição clara sobre os aspectos éticos em questão, para não falar na sua participação directa nesse governo, o primeiro-ministro, talvez aconselhado por algum focus-group que lhe disse que a partir de agora, com a informação pública já acumulada sobre as façanhas do anterior primeiro-ministro e do seu ministro da Economia, manter a neutralidade começaria a ter custos políticos, decidiu quebrar a neutralidade, e com estrondo.
Aproveitando a saída para uma visita de 4 dias ao Canadá, e saiba-se lá o que pode justificar uma visita de Estado de 4 dias do primeiro-ministro ao Canadá? borrifou-se no inocente até prova em contrário e largou-lhes às canelas os mais ferozes dos seus jagunços, o presidente do partido Carlos César e o trauliteiro João Galamba, que manifestaram, à vez, a sua indignação, primeiro com o antigo ministro Manuel Pinho, e depois, para tornar a coisa mais clara, com o antigo primeiro-ministro José Sócrates, cobrindo com pazadas de terra o caixão onde já estão sepultados. E ele próprio acabou por, no Canadá, simular indignação com eventuais casos de corrupção na era Sócrates, completando com as suas pazadas a terra que faltava para cobrir a cova. Passou de se manter em equilíbrio na corda bamba para evitar uma queda que lhe poderia causar danos políticos, a montar um cordão sanitário à volta dele e do seu inner circle para se imunizar e os imunizar contra os danos do fim cada vez mais expectável deste caso de polícia. Mandou-lhes dar veneno para os ratos para saírem de circulação, politicamente falando.
Convenhamos que nenhum deles é uma referência de ética, nem os assassinados, nem o padrinho e os esbirros, pelo que a condenação destes não é propriamente infamante, podendo até ser vista por alguns como um indício de virtude. Mas a reviravolta de dependentes, a apoiantes convictos, a observadores independentes, a carrascos, é certamente uma prova inequívoca do carácter deles.
Dos assassinados deixemos a justiça tratar, porque já o está a fazer. Da ética dos assassinos, do António Costa já tenho aqui falado, mais resumida ou mais detalhadamente, e muito mais haveria para dizer mas não vale a pena continuar, até por questões de higiene, a reputação que precede o Carlos César dispensa qualquer acréscimo de detalhes, e o João Galamba também já tem um caminho percorrido nas divisões secundárias que comprova talento e lhe assegura futuro na modalidade.
Têmo-los então a simular estupefacção e indignação se, e apenas se, se vierem a confirmar os delitos cometidos no tempo da governação de que eles próprios também fizeram parte como governantes nacionais ou regionais, dirigentes partidários ou membros a soldo de claques organizadas, fazendo parte da simulação o pressuposto que à época não deram por nada, como se fossem ingénuos apesar da evidência de serem espertalhões, tudo isto procurando delimitar os danos do caso aos que foram apanhados nas malhas da justiça, para não os atingirem a eles, que não foram, até agora. Têmo-los a assassinar o Manuel Pinho e o José Sócrates para se safarem sem mácula.
O BE e o PCP, que andam a explorar todas as oportunidades que lhes aparecem de se desmarcarem do governo PS para defenderem junto dos seus eleitores que, em vez de meras muletas que o sustentam, são imprescindíveis para o manter na linha correcta através de críticas e exigências, não vão eles ponderar que se é para sustentar governos socialistas podem antes votar no PS como já fizeram muitos eleitores do PCP nas eleições autárquicas de 2017, também trataram de se desmarcar mediaticamente deste pântano de corrupção que foi o anterior governo socialista. Foram até menos duros que os socialistas, porque tanto o BE como o PCP defenderam um alargamento do âmbito das investigações a outros governos e a outras empresas, diluindo o enfoque nos casos já em investigação até as investigações assumirem proporções impossíveis de gerir e chegar a conclusões.
Percebe-se que dediquem um grande empenho a desmarcarem-se do governo socialista, não só, mas também, por causa do pântano moral que parece alagar o chão que os socialistas pisam e a que eles não querem ficar associados.
Mas a demarcação não passa de uma farsa. Se hoje em dia Portugal é gerido por um bando de socialistas de que a maior parte, a começar pelo primeiro-ministro, já fazia parte do pântano do José Sócrates, é apenas por trinta e sete razões. E as trinta e sete razões são Carlos Matias, Catarina Martins, Ernesto Ferraz, Heitor de Sousa, Isabel Pires, Joana Mortágua, João Vasconcelos, Jorge Campos, Jorge Costa, Jorge Falcato, José Manuel Pureza, José Soeiro, Luís Monteiro, Maria Manuel de Almeida Rola, Mariana Mortágua, Moisés Ferreira, Pedro Filipe Soares, Pedro Soares e Sandra Cunha, do BE, Ana Mesquita, Ana Virgínia Pereira, António Filipe, Bruno Dias, Carla Cruz, Diana Ferreira, Francisco Lopes, Jerónimo de Sousa, João Dias, João Oliveira, Jorge Machado, Miguel Tiago, Paula Santos, Paulo Sá e Rita Rato, do PCP, Heloísa Apolónia e José Luís Ferreira do PEV, e André Silva do PAN. São os trinta e sete deputados que derrubaram no parlamento o governo da coligação que ganhou as eleições para o substituir pelo do partido que as perdeu, pelos governantes que estiveram no pântano José Sócrates e agora estão neste, e agora o sustentam sempre que a sua continuidade vai a votos, mesmo se o criticam nos discursos. É a estes trinta e sete que há-que pedir contas quando se fizerem as contas desta legislatura pantanosa.
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