Deus me livre de tentar entender, e menos ainda explicar, o IRC americano: uma das características dos sistemas fiscais modernos é serem ininteligíveis para o comum dos mortais, razão pela qual existe uma multidão de consultoras especializadas em engenharia fiscal. Lá, como cá, o que se paga depende da qualidade técnica do aconselhamento e dos recursos que se tenham, ou não, para os pagar e recorrer, sendo caso disso, aos tribunais; e lá, como cá, a simples determinação do volume do lucro, que o cidadão comum julga ingenuamente ser a diferença entre proveitos e custos, é toda uma ciência apenas para determinar o lucro tributável ̶ as despesas e os custos que gente precipitada e comum consideraria despesas e custos são ou não total ou parcialmente considerados segundo regras inteiramente arbitrárias, que têm como denominador comum, entre nós, a preocupação de maximizar a receita do Estado. Regras que vão evoluindo no tempo e que fazem com que se perca um tempo infinito a discutir a taxa do imposto sem se curar do regime, que todavia afecta com frequência a vida das empresas muito mais do que a taxa.
Por exemplo, o pagamento de impostos por conta é uma iniquidade: o Fisco presume que a empresa, porque ganhou no passado, está a ganhar no presente; e se afinal não estiver, ou estiver mas sem recursos disponíveis (situação banalíssima, basta haver significativas diferenças entre prazos de pagamento a fornecedores e recebimento de clientes, ou quebra de vendas, ou outro imponderável qualquer) espera que a empresa se endivide junto da banca ̶ para pagar o que não deve.
O regime do IVA, um imposto que a doutrina acha neutro, só seria razoável se a empresa apenas tivesse que entregar a diferença entre o que cobrou a esse título e o que pagou. Mas não: o que o nosso legislador fiscal, um patife cheio de vícios, entende, é que se vendeu deve, quer tenha recebido ou não; e se por acaso o cliente paga IVA no destino, e não ao vendedor, como sucede normalmente nas operações de exportação, a aplicação das regras faz com que, para preços iguais e recebimentos com prazos curtos, seja mais vantajoso vender no mercado interno ̶ supõe-se que seja destas coisas que os governos se gabam quando se felicitam pelo crescimento das exportações.
Saberá o leitor que se o patrão de uma PME for ao aeroporto buscar um estrangeiro e lhe oferecer um almoço todas as despesas inerentes a essa interesseira, e vulgar, deslocação e cortesia, são objecto de uma tributação autónoma, entre 10 e 30%?
De minas, armadilhas, alçapões, está o sistema fiscal repleto. E isso faz com que as comparações sejam perigosas. Mesmo assim, talvez a tentação da harmonização fiscal seja grande: a Administração Fiscal portuguesa tem todos os vícios da tradição do nosso funcionalismo (desperdício, burocracite aguda, irracionalidade), todos os das ditaduras (prepotência, inimputabilidade, descaso do indivíduo a benefício do Estado) e todos os das democracias (pilhagem acéfala dos recursos de poucos a benefício imediato da maioria que vota, com isso sapando a acumulação de riqueza e as disponibilidades e interesse no investimento, e logo o crescimento). E portanto a mesma gente voluntariosa que apostou na União Europeia porque pertencendo a um clube de ricos se ficaria, por osmose, igualmente rico, e que apostou no Euro porque se a moeda era forte a economia também fatalmente o seria, tende agora a defender que na União ̶ o que resta, enfim, depois do Brexit ̶ paguemos todos os mesmos impostos, decerto por imaginarem que vamos ter o IRC da Irlanda, funcionalismo sueco, repartições da Fazenda desenhadas por italianos, e cheirosas inspectoras do Fisco de ar afrancesado.
Nunca seria, é claro, assim: a mesma burocracia europeia que defende a harmonização defende igualmente o aumento de fundos para o Orçamento comunitário, ou seja, defende o aumento dos seus poderes e o aumento de impostos. E a ideia de que qualquer harmonização se traduzirá em benefícios palpáveis é tão ilusória como imaginar, por exemplo, que a supervisão do BCE implicará alguma poupança no Banco de Portugal ̶ as burocracias não se auto-reformam nem se cerceiam, apenas acrescentam novas camadas.
(Ou, já agora, é igualmente ilusório supor que a supervisão europeia será mais lúcida que a doméstica: Vítor Constâncio, demonstradamente inepto, não destoa lá no assento etéreo a que subiu porque os mecanismos normais de selecção de gestores na economia não se aplicam a bancos, e menos ainda a reguladores ̶ mas isso são outros lavores).
Depois, em embarcando pela rasoira da equalização, dos impostos directos rapidamente se passaria aos indirectos. E nesta como em outras matérias nem sequer se pararia para pensar que na federação por antonomásia, isto é, os E.U.A, são enormes as diferenças fiscais entre os estados: se pudesse livremente trocar o meu carro até mesmo nessa agora tão abominada Hungria, no caso de esta ter para o efeito o mesmo regime fiscal do Montana, lá iria eu com gosto estadear em Budapeste.
A harmonização não vai acontecer. Não por nós, que aceitamos há muito toda a imposição, toda a exigência, toda a caridade, toda a norma, todo o acerto e toda a patetice, como convém a quem trocou a independência possível de um país pequeno e pobre pela miragem do bem-estar a crédito; e porque, na natureza crua das coisas, a autonomia de uma região ligada à máquina do BCE para não falir não é muito maior do que a de um doente nos cuidados intensivos. Mas porque àqueles nossos pastores que, como Durão Barroso, têm uma pensão milionária garantida até aos 65 anos, não convém acelerar um barco que não pára de meter água.
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