Sempre sob o título "Admirável mundo novo" escrevi em 2012 uma série de posts respeitantes à saga da obtenção do cartão de cidadão, o retrocesso civilizacional que representa, os perigos que comporta e o desprezo que deveriam merecer os governantes que o inventaram e o mantêm.
O maldito cartão caducou, e hoje fui renová-lo. Como decorreu tal operação é o que se conta no e-mail que enviei há minutos, na sequência da forma como correu a operação, ao endereço que encontrei, com dificuldade, no site respectivo, e que abaixo transcrevo.
Exmos. Senhores:
Apercebi-me ontem de que o meu cartão de cidadão (nº xxxxxxxx) estava caducado desde 28 de Agosto. O cartão em causa, que como sabem está recheado de informações que só têm utilidade para um Estado intrusivo, abusador e a caminho de totalitário, não tem data de emissão. A sensação que tinha era a de que desde apenas há uns três anos era portador daquele infeliz documento. Consultados os meus registos, porém, tinha-o "requerido" em 2012. Passados os 60 o tempo acelera, realidade que se houver por aí algum funcionário que tenha poucos cabelos, e brancos, poderá atestar.
Sabia que o legislador, que é como se designa em legalês o político que com engenho inventa maneiras de extorquir recursos ao cidadão que imprudentemente o elege, havia fixado um prazo curto de vigência, com o evidente propósito, no caso de cidadãos da minha idade, de criar uma receita periódica que não possa ser considerada "imposto". Manobra que nada tem de original ou surpreendente, coisa semelhante se passou com as cartas de condução.
Mesmo porém que a minha idade explique o esquecimento, decerto grave a olhos de burocratas, não resisto, um tanto a despropósito mas com o intuito de sossegar alguma alma mais sensível, a esclarecer que o resto da minha saúde, incluindo aspectos o mais íntimos, se encontra em perfeitas condições.
Dirigi-me assim hoje à repartição onde há anos o havia obtido, por volta das 15 horas, com o intuito de renovar o cartãozinho, sem cuja existência dentro do prazo de validade não posso conduzir nem, a bem dizer, dar um passo fora da porta sem correr o risco de um polícia mais zeloso, ou mais apreciador de filmes de acção americanos, utilizar os poderes que uma litania de ministros da administração interna mentecaptos lhe concedeu e me deter sob a alegação de ter dúvidas de eu ser quem sou.
Navegando na multidão encontrei a máquina que emite os bilhetes que ordenam e distribuem os "utentes" pelos balcões, cujo monitor informava que estava suspensa a emissão de senhas, visto que não seriam possíveis mais atendimentos até ao fim do expediente (16H00, salvo erro).
Como porém circunvagasse os olhos pelo estabelecimento, decorado em cores alegres e com televisores a piscar por todo o lado, dei com um aviso a informar que era possível via internet ou telefonicamente marcar uma hora de atendimento, para evitar filas.
Foi o que logo fiz, para o nº 211 950 500. E uma simpática senhora, que se apresentou mas cujo nome não retive, começou por perguntar donde eu falava. Inteirada que era de Guimarães, aproveitou para reclamar de um café que lhe serviram nestas paragens, num copo de plástico.
Embirro com cafés servidos em copos de plástico e por isso, para além de inquirir se tinha, como devia, reclamado, formulei votos - sinceros - de que da próxima vez lhe servissem um café decente. Quanto à substância do meu telefonema tinha a informar que a data possível mais próxima era 4 de Outubro.
Disse mansamente que precisava de conduzir e portanto pedi me indicasse um serviço alternativo. Foi o que prestimosamente fez, sugerindo o Registo Civil, sito à rua da Ramada.
Nado e criado na cidade, nunca tal nome ouvira. Regressei ao automóvel, aparcado não muito longe num dos espaços que agora se encontram com facilidade por serem pagos a preços mafiosos, e introduzi o nome da rua no GPS, para descobrir com gosto que estava apenas a 2,5 minutos.
Iniciada a marcha, o milagroso aparelho conduziu-me, depois de um brevíssimo circuito para apreciar uma zona não particularmente atraente (e que de resto conhecia desde o tempo, em miúdo, em que não havia ainda sido destruída pela autarquia e os arquitectos locais) ao mesmo sítio de onde saíra, a pé, pouco antes.
Emiti para os meus botões algumas imprecações que, por respeito aos costumes, poupo a VV. Ex.ªs. E tenho orgulho em informar que, fora isso e um ligeiro tremor no olho esquerdo, quem quer que me encarasse veria um cidadão cordato, respeitador da autoridade em geral, do actual governo em particular, e dentro deste sobretudo a senhora secretária de Estado da reforma administrativa, com a qual teria o maior gosto em trocar umas impressões, com vista ao aprimoramento do seu múnus.
Seria o momento de colocar uma apreciável quantidade de questões a VV. Ex.ªs; e, dada a minha condição de empresário e gestor, algumas sugestões para acabar de vez com este problema, sem todavia passar por castigos corporais que o nosso adiantado estado civilizacional ultrapassou, de mais a mais para réus cujos crimes são apenas a preguiça e a estupidez.
Não querendo porém maçar, pergunto: há alguma maneira de resolver o meu problema em tempo útil?
Ficando a aguardar notícias, apresento os meus cumprimentos.
José xxxxx xxxxxxxx xx Meireles Graça.
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