A casa em que vivo foi construída em fins dos anos quarenta em dois socalcos, dos três que constituem o terreno em que está implantada. O primeiro era, e segue sendo, jardim, feito à época; e no segundo e terceiro havia pomares, horta, galinheiro e, em determinada altura, coelheira e algumas colmeias. Em tempos mais recuados chegou a cevar-se um porco, quando ainda se guardavam nas caves talha de azeite, pipos de vinho e vinagre e caixa de sal, além do madureiro. Em plena negra noite do fascismo, portanto.
A dona da casa, neta e herdeira de quem a construiu, deixa-me lá viver desde 1975. E como não pagasse renda casou comigo em 1976, legalizando portanto a situação.
O jovem casal não descansou enquanto não deu cabo dos pomares, da horta e do resto. E no segundo socalco fez uma zona de lazer na qual instalou um equipamento para dar trabalho e despesa, vulgo uma piscina, no espaço onde estavam as tangerineiras, arrelvando o resto e plantando árvores, de sombra e porte.
Fez também um lago de jardim, que povoou com carpas e rãs, garantindo assim que no Verão o silêncio da noite fosse atordoado com uma chinfrineira infernal, hoje consideravelmente diminuída pelos cuidados de uma garça forasteira que lhe faz visitas periódicas ao raiar do dia, assegurando o equilíbrio ecológico e o silêncio.
No terceiro socalco fez um mini-bosque, que no conjunto com o resto representou várias dezenas de árvores, quase todas diferentes, a gosto.
Há uns 30 ou mais anos, na única clareira disponível no antigo jardim, perto da faia tricolor, plantou-se um liquidâmbar. Durante anos, a arvorezinha foi crescendo com bastante circunspecção, mas aqui há uns dez parecia que lhe tinham soprado, e desde que se instalou rega automática deu em lançar uns ramos vigorosos, verdíssimos (na Primavera) e extensos.
A faia quase septuagenária assistiu a estes desenvolvimentos com grande fleuma. Tanto que o liquidâmbar, pouco menos alto, para o lado dela quase não conseguiu lançar ramos nenhuns, sendo portanto uma árvore desequilibrada, embora de tronco perfeitamente erecto.
Sem vento, sem chuva e sem sinais de feridas aparentes, caíram uns quantos ramos, dois com peso considerável, dos quais um para o caminho público, o que nos afligiu grandemente - poderia ir a passar um vizinho, mesmo que fosse um dos socialistas que, parece, existem em profusão nas cercanias.
Há dias caiu outro, mais uma vez sem sinais de qualquer dano; e com a trovoada e a chuva de há duas noites, que o governo engendrou como única, e desesperada, medida de combate aos incêndios, há um que tem uma inclinação mais suspeita ainda do que a credibilidade do ministro Centeno.
O cirurgião de árvores virá antes do Inverno abater aquele ser vivo, felizmente não senciente; e a benefício das futuras gerações já está bem perto uma magnólia novinha e ambiciosa.
E então, este pequeno incidente da vida doméstica contém algumas lições para edificação dos gentios? Quer-me parecer que sim, duas:
Uma é que fazer um jardim amador é uma asneira. Um jardim, como uma casa, requer projecto e especialista. Porque é difícil imaginar, a décadas de vista, como vão as árvores evoluir; porque uns sítios recomendam umas plantas, e outros outras, e o casamento de árvores com arbustos, flores, canteiros, relvas e outros espaços verdes, é muito mais traiçoeiro do que parece; e porque a manutenção é sempre cara, mas pior se incluir constantes correcções e acertos.
Outra é que o meu orgulhoso liquidâmbar é uma metáfora do país e do PS: cresce viçoso (viçoso é como quem diz, a gente embala-se com a retórica), possivelmente porque encontrou um veio de água, no caso a facilitação quantitativa, ou lá o que é, do BCE.
Os ramos que caem são o Serviço Nacional de Saúde e outros serviços que se degradam, e a sombra é a da propaganda com que se esconde a doença do nosso Estado e da nossa economia.
Será abatida a árvore, e 1 de Outubro seria uma data tão boa como outra qualquer. Assim os eleitores quisessem na mesma altura melhorar o seu jardim.
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