Segunda-feira, 5 de Novembro de 2018

Clonagem do boato

2018-11-05 O boato é a arma da reacção.jpg

O Blasfémias, um dos melhores blogues portugueses, abriu uma secção Alt-Right com uma linguagem panfletária e uma relação aberta com os factos que não é habitual nos outros participantes do blogue.

Um dos artigos publicados recentemente a propósito das eleições brasileiras continha a frase "...Endeusaram Haddad, um bandido com mais de 100 processos judiciais activos por corrupção e branqueamento de capitais..." que me suscitou, mais pela quantidade do que pela qualidade, alguma curiosidade. Curiosidade neste contexto significa duvidar da veracidade de alguma coisa que pareça boa demais para ser verdade ao seu público alvo, entenda-se, e provavelmente má demais para ser verdade a outros públicos adversos a este.

De modo que encetei um diálogo com a autora do artigo para a questionar sobre a veracidade desta estatística, perguntando-lhe se era capaz de enumerar os mais de 100 processos a que se tinha referido.

Ela simpaticamente disponibilizou-me um link para o resultado de uma pesquisa pelo nome "Fernando Haddad" no Portal de Serviços do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que de facto devolve uma lista de 118 processos.

Mas depois de dar uma vista de olhos pela lista verifiquei que, além de Fernando Haddad, que é o nome completo do candidato às eleições presidenciais do Brasil citado no artigo do blogue, também continha processos relativos a outros nomes como Rui Fernando Haddad, Fernando Nami Haddad, Luiz Fernando Haddad, Fernando Bittencourt Haddad, Antonio Fernando Haddad Marques, Fernando Haddad Garcia, Fernando Azzi Haddad, Fernando Paro Haddad, Jose Fernando Cherubini Haddad, Fernando Haddad Favero, José Fernando Haddad, Jose Fernando Haddad Ferreira, Fernando Antonio Haddad, Fernando Jorge Haddad, Fernando Ferreira Addad, Fernando Luiz Haddad e Fernando Haddad de Lima.

O motivo é simples, e não é preciso ter ensinado Bases de Dados numa universidade no milénio passado para o compreender. A pesquisa por "Fernando Haddad" devolve todos os registos que contêm "Fernando Haddad" no campo pesquisado, e não apenas os que contêm apenas "Fernando Haddad". Neste caso até se dá o caso de ser possível pesquisar no portal os processos que referem apenas Fernando Haddad, assinalando a opção de pesquisa "Pesquisar por nome completo", e o resultado fica limitado a 28 processos.

Chamei à autora a atenção para este facto  e ela prontificou-se a corrigir o erro factual no artigo.

E também me explicou onde é que tinha recolhido a informação sobre os mais de 100 processos do Fernando Haddad e o modo de os enumerar através da pesquisa no portal do tribunal: num vídeo disponível no Youtube.

 

 

Neste vídeo, publicado no dia 12 de Outubro entre as duas voltas da eleição presidencial brasileira em formato de aula, ou webminar, está a começar o Web Summit e temos de aprender esta novilíngua, o autor esclarece os alunos sobre a quantidade e qualidade dos processos judiciais sobre o candidato Fernando Haddad, interroga inclusivamente a sua motivação para concorrer a eleições que lhe poderiam conferir imunidade judicial se as ganhasse, sugere consultas no Google para perceberem melhor a tipificação dos crimes de que ele é indiciado e para recolherem informação em notícias de jornal sobre os casos específicos que originaram os processos, em resumo, ensina-os a fazer activismo nas redes sociais subordinado ao tema "Haddad criminoso".

E mostra detalhadamente o modo de acesso ao portal do tribunal e de lançamento da pesquisa, sem sequer se esquecer de lembrar os alunos de escreverem "Haddad" com dois "dd". No minuto 2:46 diz furtivamente que também podem assinalar a opção "Pesquisar por nome completo", se quiserem, sem se deter a explicar em que medida esta opção altera os resultados, e continua a aula, podendo os alunos mais atentos ter reparado que ele assinalou a opção, e aos mais distraídos ela ter-lhes entrado por um ouvido e saído pelo outro.

A ligeireza do tratamento da questão do nome pode ter sido uma falha pedagógica, se o professor pretendia esclarecer os alunos sobre a sua importância e não foi capaz, ou um caso de pedagogia da falha, se pretendia mesmo que os alunos não se apercebessem do que estava em causa para posteriormente não virem a ter o cuidado de ser rigorosos na aplicação prática dos princípios ensinados, ou seja, que propagassem boatos mesmo sem dar por isso.

A verdade é que houve alunos que não tiveram e, por não terem tido, divulgaram um boato em vez da notícia que pretendiam divulgar. Também o podem ter divulgado tendo a noção que pecava por exagero relativamente à base factual, mas é matéria sobre a qual não vale a pena especular por só cada um deles saber a verdade.

Pelo que desto caso se podem tirar duas conclusões:

  • Há activistas que se dão ao trabalho de preparar materiais pedagógicos para apoiar outros activistas a passar a mesma mensagem com os mesmos argumentos e os mesmos fundamentos, num processo de clonagem do activismo político.
  • Entre esses activistas há-os que são insuficientemente claros na pedagogia a que recorrem e desse modo estimulam a propagação de boatos que reforçam a mensagem que pretendem divulgar e fazer divulgar, transformando este processo num de clonagem do boato.
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publicado por Manuel Vilarinho Pires às 17:29
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10 comentários:
De Daniel Marques a 5 de Novembro de 2018 às 21:05
28 processos sao muitos processos. E ao longo de anos. Nao se trata propriamente de um boato mas sim um exagero. O numero estara errado mas a conclusao fica.
De Manuel Vilarinho Pires a 5 de Novembro de 2018 às 21:08
O que torna ainda mais ridículo recorrer à mentira para exagerar o número.
De Terry Malloy a 6 de Novembro de 2018 às 01:11
Quando interpela a autora, lhe aponta o erro "metodológico" que a conduziu a um número factualmente errado, esta reconhece imediatamente o erro e altera o texto para passar a constar o número certo, e ainda assim se afirma que se tratou de " recorrer à mentira para exagerar o número", sabendo-se que a mentira implica, necessariamente, dolo e premeditação na falsidade, diria que isso é "linguagem panfletária e uma relação aberta com os factos que não é habitual [neste] blogue".

Cumprimentos
De Manuel Vilarinho Pires a 6 de Novembro de 2018 às 10:43
É louvável o seu esforço para proteger a reputação da autora, ainda que aparentemente sob pseudónimo, apesar de a palavra "mentira" não aparecer no texto desta publicação nem ele contenha qualquer insinuação sobre as intenções da autora que, independentemente da minha convicção pessoal, seria tonto fazer porque só ela sabe o que sabia e o que queria quando escreveu o que escreveu. E panfletário.
Mas a melhor forma de proteger a reputação é falar verdade e, para isso, é necessário duvidar sempre do que se lê e fazer um esforço para o confirmar antes de o divulgar. No fenómeno de propagação de boatos é indiferente que quem os propaga acredite neles ou saiba que são falsos, porque o resultado da propagação é convencer terceiros que são verdade não sendo. O que aconteceu neste caso.
Outra coisa é o endoutrinador em cuja "aula" a autora se inspirou para disseminar o boato. Ao dissimular como se não tivesse qualquer relevância um detalhe determinante para a formação do resultado da pesquisa o endoutrinador estimulou os seguidores a cometerem o erro metodológico e, em consequência dele, a acabarem por disseminar um boato. Neste caso não tenho dúvida nenhuma do seu dolo, de onde a origem do boato ser efectivamente uma mentira.
Cumprimentos
De Carlos Conde a 5 de Novembro de 2018 às 23:55
Apetece perguntar se não leu ou ouviu aqui em Portugal, nada falso sobre Bolsonaro que lhe mereça uma crítica.

É muito diferente ser assassinado com 28 ou com 100 balas?
De Manuel Vilarinho Pires a 6 de Novembro de 2018 às 00:08
Não. Mas se me mostrar webminars da oposição brasileira a ensinar internautas a falar mal do Bolsonaro terei todo o prazer em divulgá-los aqui.
De Daniel Marques a 7 de Novembro de 2018 às 09:45
Por outro lado tambem nao vi nenhum medium portugues a falar dos processos de Haddad assim que estamos num equilibrio curioso.
De Manuel Vilarinho Pires a 7 de Novembro de 2018 às 20:22
Caro Daniel Marques, eu não sou jornalista nem proprietário de jornais, de modo que compreendo a sua insatisfação mas não estou em posição de fazer nada para resolver essa situação.
De Daniel Marques a 10 de Novembro de 2018 às 04:42
Eu nao sou Brasileiro assim que me importa pouco o Bolsonaro. Duvido que votasse nele mas teria que estar no Brasil para formar opiniao. O Manuel esta surpreendido com o facto de haver activistas que se dao ao trabalho de criar este tipo de material. Eu avanco com uma explicacao. A imprensa nao estar a fazer o seu trabalho sera uma boa razao. Se tratas as pessoas como tontas rapidamente essas pessoas vao tentar ver o que mais estas a tentar esconder. Ergo, espaco para as fake news.

Peco desculpa pela acentuacao. Estou a escrever de um telemovel sem teclado portugues.
De Manuel Vilarinho Pires a 10 de Novembro de 2018 às 11:13
Só um reparo. Eu não estou surpreendido com o facto de haver activistas que se dão ao trabalho de criar este tipo de material. Eu percebo este trabalho, a metodologia e a finalidade. Apenas deixei registado um exemplo específico de cuja existência me apercebi fortuitamente.
Também percebo que um dos aspectos essencias da metodologia [de espalhar notícias falsas] é o desincentivo a confrontá-las com os factos que os desmascaram como boatos, e o b-a-ba disto passa por desacreditar a imprensa insinuando que ela não os noticia, ou não os noticia numa óptica idêntica, para esconder a realidade aos leitores.
A imprensa tradicional faz o seu trabalho. Mas o trabalho da imprensa não é, nem se exige que seja, isento. Nos EUA, por exemplo, onde há uma cultura de transparência, a generalidade da imprensa declara o seu posicionamento político em vez de simular uma isenção falsa como se faz cá. Exige noticiar factos reais, que depois os jornalistas e os comentadores analisam em função da mensagem que querem fazer passar. Mas os factos devem ser reais. Por isso, a imprensa é um bom local para tentar validar boatos, mesmo se utiliza os factos para contar uma história tendenciosa. É preciso é saber lê-la e conseguir distinguir o que é facto do que é sugestão de interpretação e do que é opinião.
As notícias falsas, e os sites que as disseminam ou ensinam a disseminar, por seu lado, são tendenciosos e não têm sequer preocupação de os factos em que se baseiam serem reais. Não são uma alternativa à falta de objectividade da imprensa, são um extremar da falta de objectividade da imprensa.

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