Dos tribunais espera-se não apenas que dirimam conflitos entre cidadãos mas também, num estado de direito, entre estes e o Poder. Quando o legislador ofenda princípios fundamentais, consagrados pela doutrina, quer estes estejam quer não estejam vertidos expressamente no texto da Constituição, ou alguma disposição desta, pode intervir, a pedido de pessoas ou entidades pertencentes a um certo elenco, um tribunal especializado, que pode anular, com força obrigatória geral, o texto ou a parte do texto que ofende aqueles direitos.
Toda a gente sabe isto. E como, num estado de direito, o legislador tem legitimidade democrática mas a dos tribunais é de outra natureza (é a perna judicial, para impedir o arbítrio e a ditadura de maioria), é de esperar que, aqui e além, haja situações de conflito. A circunstância de a maioria dos juízes serem nomeados pela Assembleia da República, mas sempre de entre a casta dos juristas, não reforça a legitimidade democrática destes juízes, por comparação com os "ordinários" dos restantes tribunais - é apenas um expediente, que não teria natureza muito diferente se a escolha fosse feita, por exemplo, pelo Presidente da República.
O conflito é bom: o Poder corrompe, desnorteia, exagera, incrusta-se. E os cidadãos precisam de quem, por ser inamovível e irresponsável, os proteja de abusos. Esses abusos podem ofender um só indivíduo, um grupo deles, ou categorias inteiras de cidadãos, por via legislativa, e seja a protecção exercida por um Senado vitalício, uma secção especializada do Supremo Tribunal de Justiça, ou outro arranjo qualquer, o que importa é que exista.
Mas os juízes sempre serão pessoas, e portanto as opiniões do TC podem evoluir, porque as mesmas pessoas mudam de opinião e porque novas pessoas terão novas opiniões. Porém, o papel do juiz é interpretar a Lei, e nenhuma interpretação aceitável de um texto legal, qualquer que seja a ginástica argumentativa, o esforço de adaptação a circunstâncias novas, ou a evolução da opinião, pode resultar no oposto à sua letra e ao seu espírito. E não se diga que, qualquer que seja o texto constitucional, sempre haverá princípios não escritos a que o intérprete está obrigado: porque o problema não está em identificar princípios, mas em harmonizá-los; e porque a harmonização (mais igualdade contra menos liberdade; mais confiança contra menos governabilidade, por exemplo) sempre terá que fazer-se em obediência ao espírito da Lei.
Estes senhores juízes em concreto são maioritariamente, na minha opinião, que não me dou ao trabalho de tentar demonstrar, estatistas. Mas pergunto: outros juízes, com a mesma Constituição estatista, prolixa e socialista, que é a nossa, poderiam chegar a resultados substancialmente diferentes, salvo numa ou noutra disposição?
A verdade é que o Acordo com a troika era inconstitucional, por, desde logo, implicar despedimentos na Função Pública, mesmo que o não dissesse explicitamente; e inconstitucional (a menos que se entenda que o vértice do ordenamento jurídico português não é a Constituição) é o Tratado Orçamental, por implicar a mesma coisa, quer seja quer não seja cumprível por outras razões. Daí que estas discussões sobre um novo arranjo para a nomeação de juízes me pareçam ociosas - o problema não reside neles.
O primeiro-ministro Costa não quererá correr o risco de desafiar a Constituição e, por conseguinte, o TC. Mas como tentar corrigir o défice com aumentos de impostos, como com louvável franqueza sugeriu o TC, não é simplesmente viável; e conseguir que a Europa nos subsidie permanentemente, transida de respeito pelas nossas leis e as nossas instituições, é impossível; tendo em conta que, permanecendo no Euro, nada de substancial mudará: está desenhado um nó górdio.
Dizia-me uma querida amiga há dias, a propósito deste meu texto: o que tu queres é um PREC.
Não sei o que vai haver. Se soubesse, em vez de trabalhar muito e ganhar pouco, começava desde já a negociar em moeda, a fim de, como seria justíssimo, trabalhar pouco e ganhar muito.
E quanto ao nó górdio? Terá de ser cortado, claro - é da natureza dos nós górdios que alguém os corte. Mesmo que almas puras imaginem que, empurrando os problemas com a barriga, eles tendam a desaparecer. Com PREC ou sem PREC.
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