"Mas, repito-o, era um avaro intelectual que não gostava de fazer a esmola de uma ideia. Não o censuro, pois é sabido que ele dava todo o seu tempo e todo o seu génio às grandes questões sociais. Elas preocupavam-no tanto que era usual – sempre que diante dele se falava de assuntos políticos – ouvi-lo murmurar soturnamente:
– Ele há muitas questões! Questões terríveis: o pauperismo, a prostituição! São grandes questões! Questões terríveis!"
Já ninguém fala de pauperismo. A palavra caiu em desuso, decerto porque pobreza toda a gente sabe o que é, e pauperismo nem por isso. Depois, está provado que nos podemos todos entender com um léxico de 70 palavras, donde porquê complicar? É certo que a palavra "prostituição" poderia ser igualmente substituída - por "putedo", conforme lembrou recentemente o camarada Arnaldo Matos. Mas a designação de "puta" tem uma inegável carga pejorativa, razão pela qual as pessoas verdadeiramente modernas preferem a perífrase "trabalhadora do sexo" (com grande impropriedade, consta-me, porquanto muitas senhoras que exercem a profissão tendem a oferecer apenas o merecimento dos autos, trabalhando pouquíssimo quando em exercício - mas sobre isto não há trabalhos de campo credíveis).
A palavra "pauperismo" caiu em desuso mas o problema, infelizmente, não. E, para o resolver, os comunistas e as pessoas com bons sentimentos, com perdão da redundância, têm uma receita infalível: tira-se aos ricos; dá-se aos pobres; e ficam todos remediados. E vozes liberais têm outra solução, que tem aliás sido seguida, consistindo na globalização, a qual tem tirado milhões da miséria e atirado milhares para o desemprego - mas não nos mesmos lugares.
Quer dizer que nisto já não somos condes d'Abranhos: conhecemos os problemas e temos as soluções - apenas não nos entendemos sobre quais elas sejam.
O conde morreu, então?
Que nada - anda por aí. Mas modernizou-se: os problemas são inúmeros, mas convém embrulhá-los em citações, que sempre o leitor julgará que erudição e sabedoria são a mesma coisa; de preferência, profundos, não vá julgarmos que percebemos o mundo que nos rodeia; e quanto a soluções, nada, que já não é pequeno esforço identificar o problema, era o que mais faltava dizer como remediá-lo.
Com os analistas que se inquietam silenciosamente podemos nós bem - os incontinentes verbais é que não nos deixam sossegar. E, realmente, os valores ocidentais, para efeitos de definir o que é um Estado, parecem uma coisa francamente obsoleta: por mim, encararia favoravelmente o governo por um comité de sábios interestelares; mas, como a vida noutros planetas ainda se nos não revelou, veria com bons olhos a reforma do Estado, ainda que essa ciclópica tarefa só seja sugerida "por vezes".
Vamos lá então: e como se reforma o Estado? Não se pode, porque temos que "começar por reformar a ONU, para, com coerência, poder reformar o Estado".
Há por aí gente que julga que Eça não criou personagens intemporais.
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