Há uns bons anos, estava com uma senhora na cama, altas horas, e ela lia, apercebi-me, as cartas de Eça à sua futura mulher; eu um ensaio qualquer sobre um recanto obscuro do passado, ou umas tretas sobre as tendências do presente, que são as coisas que me entretêm há que tempos.
A senhora, às tantas, depositou o livro aberto na barriga e, fitando sem ver a parede em frente, murmurou no silêncio sepulcral do quarto: se um homem me escrevesse cartas assim apaixonava-me por ele!
Aquilo não me caiu bem. E, a despeito de Eça ser um dos santos no altar exíguo das minhas devoções, embarquei numa doutoral dissertação sobre a hipocrisia do autor, e o seu casamento por interesse na família dos condes de Resende. Creio até ter chamado à colação o exemplo de Teodorico Raposo que, depois de caído em desgraça, na Relíquia, casou com a irmã abonada do amigo Crispim. Conclui informando que Eça era incapaz de, escrevendo, não ser admirável. E que, se o papel era o de apaixonado, então era bem capaz de despertar a atracção romântica da madre Teresa de Calcutá, ainda por nascer.
Não convenci. E ficou por apurar se o silêncio desaprovador resultava de sono ou da constatação de uma putativa ciumeira.
Lembrei-me desta história por causa do texto da Spiegel que acusa Ronaldo. Está bem feito, o texto. E é tão convincente, como aliás todas as outras peças da mesma proveniência, que todas as feministas que conheço dão como adquirido que ele violou sem sequer se darem ao trabalho, as mais raivosas, de deixarem a clássica ressalva de ser necessária a provazinha da culpa em tribunal.
Sucede que nem todas as mulheres compram, sem mais, a tese da culpabilidade. E esta, por exemplo, que não tem frio nos olhos nem consta que sofra da doença do machismo denunciada pelo movimento Metoo, vê no relato mais buracos do que num queijo Gruyère.
Eu também vejo. E como tenho pelo movimento feminista um respeito excessivamente moderado e pelos homens que nele se alistam, incluindo amigos meus, a forte suspeita de que o que querem é, enrolados na bandeira da modernidade pateta, agradar ao belo sexo a qualquer preço, acrescento:
O MeToo é uma americanice grotesca e interesseira que, a coberto de casos reais de violação e abusos, pretende dar às mulheres vantagens indevidas, que consistem no poder não sindicado de arruinar carreiras e reputações, e no deixar passar para a consciência social a ideia de que quem é acusado por uma mulher, se o crime for de índole sexual, tem os seus direitos de defesa automaticamente diminuídos;
O feminismo é de esquerda, mesmo quando subscrito por pessoas de direita, porque cede ao discurso dos “fracos” e dos “oprimidos” contra os “poderosos” e os “opressores”. É uma bandeira fabricada pela indústria de causas, a mais dinâmica neste dealbar do séc. XXI, alimentada pela comunicação social para vender e pelas redes sociais para que os cidadãos possam ventilar a sua indignada virtude;
Os inimigos expostos à execração são os mesmos de sempre, isto é, os que detêm poder e riqueza. É isto que explica que a empregada que diz que o patrão a assediou tenha automática audiência e serviços públicos prestimosos a investigar, mas o mesmo empenho não se verifique na repressão de práticas medievais como a mutilação genital feminina ou os casamentos forçados em comunidades muçulmanas ou ciganas;
Há cada vez mais mulheres educadas que, na competição por lugares que são naturalmente menos numerosos do que os pretendentes, descobriram que a reivindicação de quotas elimina concorrentes. Uma guerra dos sexos vem a calhar, sobretudo se o inimigo, por ser filho de umas, e marido, amante ou irmão de outras, não perceber que é de uma guerra que se trata.
Pergunta-se: todos os que viram e veem as suas carreiras destruídas por acusações eram culpados dos crimes de que foram acusados, e algum beneficiou realmente da presunção de inocência? Não, porque sofreram uma pena sem processo legal. Ou seja, o movimento feminista defende um retrocesso civilizacional, que é a equiparação dos putativos agressores sexuais a cristãos-novos acusados de judaísmo, e a consagração do princípio de que, para certos crimes, mais vale a eliminação de todos os potenciais criminosos do que o risco de que alguns fiquem por condenar.
De resto, não faltam por aí excitadas a defender que a violação, tal como a define o código penal português, precisa de ver a sua definição legal alargada, e a sua moldura penal agravada. Como se o agravamento da sanção penal para os crimes da moda alguma vez em algum lado tivesse feito mais do que arrastar consigo o agravamento de outras penas para outros crimes; e como se as grandes taxas de encarceramento, e a violência da resposta penal, fossem apanágio de sociedades pacíficas.
Querem importar americanices, minhas senhoras? Fiquem-se pelos blue jeans justinhos, se estiverem bem servidas de pernas, e pela coca-cola light, se não estiverem.
Blogs
Adeptos da Concorrência Imperfeita
Com jornalismo assim, quem precisa de censura?
DêDêTê (Desconfia dele também...)
Momentos económicos... e não só
O MacGuffin (aka Contra a Corrente)
Os Três Dês do Acordo Ortográfico
Leituras
Ambrose Evans-Pritchard (The Telegraph)
Rodrigo Gurgel (até 4 Fev. 2015)
Jornais