O senhor presidente da República anunciou há dias uma crise na direita e ofereceu-se para servir de fiel na balança dos equilíbrios políticos para logo a seguir aos resultados das próximas legislativas. Rui Rio, que lidera uma parte do PSD e que convencionalmente a comunicação social descreve como “líder da oposição”, não gostou: para ele há uma crise sim, mas no sistema político democrático como um todo, do que seriam prova, presume-se, os quase sete milhões e meio de abstencionistas nas recentes eleições para o “parlamento” europeu, num universo de pouco mais de dez milhões e setecentos mil eleitores.
Almas atormentadas e engenhosas oferecem soluções para esta alegada crise do regime democrático e encontram o remédio numa reforma das leis eleitorais, sem a qual o eleito cada vez estará mais distante do eleitor – daí o grau crescente do abstencionismo. O eleitor não conhece o deputado, que realmente não elege, salvo talvez o cabeça de lista e eventualmente um ou dois nomes, e aquele depende portanto dos jogos de poder internos dos partidos, e da confiança do líder, e não do eleitor do seu círculo. Ah, que se o candidato a deputado dependesse directamente de quem o elege, como na Velha Albion, veríamos a qualidade média do deputado subir esplendorosamente e o Parlamento dar todos os dias prova de grande independência em relação aos poderes dos líderes, que por sua vez cessariam de viver embrulhados em obscuras moscambilhas para lhes perpetuar o poder.
Ribeiro e Castro é um campeão desta maneira de ver as coisas. E oferece uma solução completa, equilibrada e respeitando ao mesmo tempo a proporcionalidade e a responsabilidade directa de ao menos uma parte dos deputados.
Intelectualmente, a proposta é atraente. Sucede porém que quem dela espera a solução para a “crise”; quem julga que algum dos problemas sérios do país será com ela ultrapassado; quem sonha com um parlamento “de direita” lá onde está um parlamento de esquerda; e quem imagina que no lugar de calões, subservientes, parlapatões, inúteis e medíocres, passaríamos a ter direito a intelectuais probos, oradores brilhantes, estadistas lúcidos e cidadãos independentes que o sucesso das suas carreiras profissionais garantiria, está a enfiar um dedo no olho até ao cotovelo.
Por partes:
Marcelo nunca viu, em toda a vida, nada para além dos joguinhos tácticos, nos quais é brilhante, para obtenção e conservação do poder, nem nunca fez ou disse, nem sabe fazer, dizer ou pensar, nada de relevo para qualquer reforma do país, cujos problemas identifica com a estabilidade do regime falido e exangue a que alegremente preside com um sorriso beato e auto-congratulatório. O que diz é apenas um expediente para realçar o seu desejo de estar no centro dos acontecimentos, conforme aliás toda a gente que pensa percebeu. O eleitorado, porém, não; e nessa ignorância, distracção ou inconsciência faz Marcelo, provavelmente bem, a sua aposta. Deixemo-lo em paz, que na realidade é apenas um doutoral Tino de Rans.
Sucede que quase toda esta gente tem razões de queixa do sistema actual, que em algum momento os triturou por lhes ter vedado o acesso, ou não terem podido manter-se, ao andor do poder. Só isto já nos deveria fazer desconfiar porque decerto acham que, fosse o sistema outro, e não teriam sido maltratados. Mas um módico de senso deveria fazê-los ver que o sistema que recomendam não os recomendaria necessariamente a eles aos olhos do eleitor; nem há nenhuma garantia de que não trocaríamos as não-pessoas que agora elegemos por advogados do queijo limiano, demagogos sortidos e tresloucados de vária pinta.
A inspiração em sistemas alheios é uma velha pecha nossa, como o é a ideia de que a mudança da arquitectura do regime arrasta consigo a mudança da realidade da nossa tradição histórica, do nosso atraso atávico, da falta de competitividade do país, do nosso perfil sociológico e do peso das nossas circunstâncias geopolíticas. Esse Reino Unido cujos parlamentares, directamente eleitos em círculos uninominais, invejamos, não tem na casa da democracia representantes de pequenos partidos, isto é, não representa directamente correntes demasiado pequenas do pensamento político; e nos Estados Unidos, o outro grande país onde a democracia não é um enxerto, pode o titular do poder executivo ser eleito sem uma maioria absoluta de eleitores e os senadores da câmara alta representam os Estados federados, independentemente do seu número de votantes. Ou seja, são democracias “imperfeitas”, excepto pelo detalhe de funcionarem satisfatoriamente. Não agradam, é claro, a britânicos e americanos, sobretudo aos derrotados em cada eleição, mas não lhes ocorre mudar o sistema. Talvez por intuírem que a democracia é um sistema imperfeito que desagrada a quase toda a gente, e a ditadura um em que quem manifestar o seu desagrado vai preso.
As principais campainhas de alarme para este desconforto são o abstencionismo nas últimas eleições (ligeiramente acima de 69%, cerca de 3 pontos acima das anteriores europeias) e a patente derrota da chamada direita. Não costuma ser incluído no perímetro da “crise” o desastre do PCP, que perdeu 188.000 eleitores, decerto porque, destes, 176.000 foram para o BE e portanto julgar-se-á que ficou tudo mais ou menos na mesma. Porém, o PCP era apenas um tumor estável da democracia, com o qual o corpo social se habituou a lidar; e o BE é suficientemente equívoco para arrastar atrás de si fatias do eleitorado que acreditam que há um país rico e justo à espera de ser decretado, e isto quando o resultado líquido das políticas bloquistas só pode ser uma venezuelização europeia do país. Donde, é duvidoso que tenha havido qualquer progresso, mas adiante.
Sucede que os eleitos para o PE vão para lá defender subsídios para o país e vantagens para eles e os nossos emigrantes, e isto qualquer que seja a sua origem partidária. Donde, não fazia realmente diferença que fosse eleito o Chico ou o Manel, a menos que as eleições fossem utilizadas como uma mega-sondagem à popularidade do governo PS. Sobre isto, o eleitorado disse o seguinte: como o PSD actual aprecia boas contas e é europeísta, e o governo PS é europeísta e aprecia boas contas, não vale a pena mudar. E disse-o claramente, com uma votação cuja abstenção só foi percentualmente maior do que nas eleições similares anteriores porque o universo eleitoral foi engordado com um milhão e oitenta e três mil eleitores residentes no estrangeiro, que naturalmente se abstiveram (o número de votantes, entre 2014 e 2019, cresceu mais de 30.000) Há uma percepção difusa de que algo vai mal no SNS e nos outros serviços públicos, e começa lenta, muito lentamente, a passar para a opinião pública a ideia de que o país não cresce, mas isso não chegou para aconselhar a mudança.
Pois não, não cresce, nem pode crescer com o PS a taxar tudo o que mexe, a empurrar a dívida com a barriga, a engordar o Estado com a compra de votos e benefícios o mais barato que possa ser mas ainda assim alguma coisa, e a recobrir o conjunto com uma eficaz propaganda que a comunicação social compra.
O papel da direita, assumidamente difícil porque o regime democrático criou e mantém uma maioria sociológica de esquerda, acoitada no Estado e no sistema de pensões (ideia que se ausentou do comentariado mas não, infelizmente, da realidade) deveria ser martelar esta ideia do atraso relativo até à náusea, indicando os caminhos da redenção crescimentista. Tem feito isto? Não, tem tentado pescar em águas despesistas que não são suas (como no caso lamentável da contagem do tempo de serviço dos professores), tem corrido atrás de todos os descontentamentos e todos os tiques grotescos e pequenos ilícitos de uma governação oca, corrupta e inepta, mas sem um trabalho sério, o mais das vezes, sobre a reforma do Estado, que tem de emagrecer, a fiscalidade, que tem de baixar, e sobretudo salientando as diferenças entre o PSD e o CDS como se algum dos partidos, isolado, guardasse em si um potencial de vitória e não precisassem os dois de um programa mínimo comum.
Se julgam que algum destes males se vai remediar com a reforma das leis eleitorais, boa sorte lá com isso. A terem sucesso, depois de consumirem energias na empresa e na guerrilha que gerará, descobrirão daqui a uns anos que temos uma democracia quase perfeita, a par de um produto por cabeça igual ao da Roménia. Já faltou mais.
Blogs
Adeptos da Concorrência Imperfeita
Com jornalismo assim, quem precisa de censura?
DêDêTê (Desconfia dele também...)
Momentos económicos... e não só
O MacGuffin (aka Contra a Corrente)
Os Três Dês do Acordo Ortográfico
Leituras
Ambrose Evans-Pritchard (The Telegraph)
Rodrigo Gurgel (até 4 Fev. 2015)
Jornais