Na semana passada especulei aqui sobre quais podem vir a ser as consequências possíveis do anúncio pelo novo presidente brasileiro Jair Bolsonaro, não se lhe pode chamar medida política porque ele ainda não governa, de exigir alterações ao contrato entre os governos brasileiro e cubano ao abrigo do programa "Mais Médicos" que são consideradas inaceitáveis pelo governo cubano, pelo que conduz inevitavelmente à ruptura do contrato.
Fiz essa análise essencialmente na óptica mais relevante para analisar uma medida política de um governo, a que olha para as consequências dessa medida para os governantes que a tomam e para os governados que são afectados por ela, o presidente Bolsonaro e os brasileiros servidos por médicos cubanos, e cheguei à conclusão que a medida terá certamente consequências positivas para o presidente, e para os utentes dos médicos terá consequências que poderão ir da neutralidade, se não houver uma disrupção dos cuidados médicos a que têm acesso hoje em dia, à catástrofe humanitária, se perderem durante um período longo o acesso a esses cuidados. E esta distância entre as consequências mais positiva e mais negativa inspirou o título do texto "Roleta Russa".
Mas alguém me chamou a atenção, e bem, para o facto de ter discutido insuficientemente as consequências da medida para uma parte que por um lado é importante neste processo e por outro está sujeita a uma situação de alguma fragilidade, os médicos cubanos.
Os médicos cubanos, tal como todos os cubanos, vivem numa ditadura comunista. Não têm, portanto, a liberdade que nós temos, mas alguns dos mais velhos de nós já não tivemos, e ao não ter tido aprendemos a perceber bem a diferença entre tê-la e não a ter. E vivem num país com a ineficiência económica inerente ao socialismo. Ou seja, não são livres nem prósperos.
E, como faz parte da natureza humana tentar a sorte noutras paragens quando não se é livre nem próspero onde se está, são impedidos de sair para o estrangeiro para não fugirem, e só lhes são permitidas as saídas em circunstâncias excepcionais. Por exemplo, quando são enviados pelo governo para desempenhar funções no estrangeiro, como acontece aos médicos cubanos.
Uma das formas de os desincentivar de fugirem quando se encontram num país estrangeiro como o Brasil, não sendo possível vigiá-los e controlá-los permanentemente, é de não permitir que se façam acompanhar pelas suas famílias quando saem do país, tendo a noção que se fugirem, como lhes é relativamente fácil fazer, podem não as voltar a ver por elas serem impedidas de sair do país para irem viver com eles.
Isto tudo é importante neste contexto porque um dos motivos pelos quais aqueles a quem a medida, ou a sucessão de anúncios de ameaças e de promessas, do presidente Bolsonaro parece mais positiva do que negativa é justamente a falta de liberdade que vitima os médicos cubanos que estão no Brasil, e a possibilidade de lhes devolver a liberdade se se desligarem, como têm oportunidadede fazer se o presidente cumprir a promessa de os acolher no Brasil, das amarras que os prendem ao regime cubano. E, quer sejam oito mil e tal, quer sejam onze mil e tal, e há notícias a citar os dois números e não sei determinar qual deles é o real, libertá-los a todos seria um sucesso extraordinário, sem qualquer tipo de cinismo político.
O presidente Bolsonaro não se cansou, aliás, de repetir que os queria no Brasil, livres (com a possibilidade de ter as famílias a viver com eles) e com direitos (a receber directamente o salário em vez de receberem do governo cubano um salário que é substancialmente mais elevado do que o que têm em Cuba mas substancialmente mais baixo do que o de um médico brasileiro e do que o valor pago por cada um ao govero cubano). E de comparar a situação actual deles com a escravatura, no que tem sido um argumento de carga dramática muito forte dos adeptos da medida.
Que consequências é que esta intenção declarada do presidente Bolsonaro, que desencadeou a reacção natural e esperada do governo cubano de rescindir o contrato com o governo brasileiro e ordenar o regresso dos médicos cubanos, pode ter então para os médicos cubanos?
A primeira definição que é necessário precisar para proceder a esta análise é que uma medida política vale pelas suas consequências, e a consequência de uma medida é a diferença entre a situação prévia e a situação real que resulta da concretização da medida, e não a diferença entre uma situação prévia que carece de intervenção e uma situação ideal que ela pretende ou alega atingir.
Neste quadro, a consequência de uma medida destinada a libertar os médicos cubanos que não são livres como deviam não é necessariamente a desejada liberdade deles, mas a situação real em que se vierem a encontrar depois de a medida ser implementada.
Posto isto, qual e a situação prévia que carece de intervenção?
É o facto de os cuidados médicos serem assegurados a um número cuja estimativa varia entre notícias mas que não deve ser inferior a vinte milhões de brasileiros por médicos cubanos ao abrigo do programa "Mais Médicos" , e de estes médicos receberem salários indignos para os padrões brasileiros e serem sujeitos a limitações inaceitáveis à sua liberdade, nomeadamente ao não serem livres de levar as famílias com eles para o Brasil, numa condição que uma retórica activista dos direitos humanos e sociais define como "escravos" com os familiares "reféns" do regime cubano. E serão mesmo?
Escravos? Já vimos que livres não são, como ninguém é numa ditadura, comunista ou de outra orientação ideológica qualquer. Mas para poderem ser honestamente considerados escravos seria preciso, em primeiro lugar, que fossem forçados a trabalhar contra a sua vontade.
Ora estes médicos trabalham no Serviço Nacional de Saúde cubano onde têm emprego assegurado e candidatam-se a vagas nas missões no estrangeiro para onde, quando as suas candidaturas são aceites, são enviados. E porque é que se candidatam a missões no estrangeiro em vez de continuarem nos seus portos de trabalho de origem? Porque, mesmo recebendo menos do que os médicos brasileiros e muito menos do o governo cubano recebe pelos serviços prestados por eles, recebem muito mais do que no SNS cubano. Estes médicos estão no Brasil porque querem e porque têm interesse pessoal, nomeadamente a nível salarial, em lá estar. Escravos não são.
Explorados? Os médicos colocados no Brasil recebem apenas um terço, vamos tomar esta fracção por fidedigna mas, mesmo que não seja, não tem grande relevância determinar o montate exacto, do que o governo cubano recebe pelos serviços que eles prestam. Isto é exploração? Se nos esforçarmos por olhar para a situação numa óptica trabalhista podemos dizer que sim. Se olharmos à nossa volta para a economia de mercado em que temos a sorte de viver, pode ser que não.
Eu iniciei a carreira profissional numa multinacional de informática onde, se eu passasse um dia completo a prestar assistência a um cliente e a empresa lhe facturasse as oito horas do trabalho prestado por mim, recebia por esse dia de trabalho meu mais do que me pagava de salário mensal. Eu sentia-me explorado? Não, ganhava muito bem e até sentia uma certa vaidade por ver como o meu trabalho era tão valorizado pelos clientes que apoiava. As empresas de serviços numa economia de mercado compram a mão-de-obra a preços de mercado e vendem os serviços a preços de mercado, e mesmo que os trabalhistas vejam nisto uma perversão, é o melhor que se arranjou até agora para proporcionar vidas mais decentes a mais trabalhadores. O governo cubano não faz muito diferente ao oferecer a médicos cubanos com salários inferiores a cem euros por mês a oportunidade de se candidatarem a ganhar várias vezes mais no Brasil, e a oferecer ao governo brasileiro serviços de médicos por um valor competitivo com o que o governo brasileiro teria que oferecer a médicos brasileiros para aceitarem ocupar as vagas nos locais pobres e remotos onde os médicos cubanos trabalham. Havendo aqui intervenientes que não são agentes numa economia de mercado, todos participam neste negócio bem informados sobre as suas condições e livres de decidir participar ou não, pelo que não se pode dizer que este negócio viole as exigências de uma economia de mercado, nem que a exploração a que é sujeta uma das partes seja diferente da exploração a que é sujeito qualquer trabalhador numa economia de mercado.
Reféns? Em Cuba, como na generalidade dos países comunistas, toda a gente é refém, toda a gente é impedida de se deslocar ao estrangeiro a não ser em circunstâncias excepcionais e normalmente acompanhada de funcionários com responsabilidade pela sua vigilância, e nomeadamente por não os deixar fugir.
E as famílias dos médicos também. São impedidas de sair mas não são ameaçadas de represálias no país no caso de o seu familiar fugir. Simplesmente continuarão a ser impedidas de sair, e ele de entrar para não se deixar recapturar, o que significa que uma fuga de um pode ter como consequência a impossibilidade de voltar a ver a família. Isto não faz deles vítimas de qualquer forma de discriminação comparativamente com qualquer outro cubano a trabalhar no estrangeiro ou em Cuba. São apenas, todos eles, vítimas do comunismo.
Acresce que entre os onze, ou oito, mil e tal médicos do contingente cubano no Brasil há cento e cinquenta, entre um e dois por cento, que têm a ambição declarada de não regressar a Cuba, tendo para isso instaurado processos na justiça brasileira.
Tudo junto, quais são as consequências para os médicos cubanos desta intenção de medida política do novo governo brasileiro com o objectivo confesso de os libertar?
Para os cento e cinquenta que querem ficar no Brasil isto é a oportunidade de libertação, tanto mais que o presidente Bolsonaro já prometeu publicamente que os acolherá no Brasil. Em boa verdade não seria necessário provocar a rescisão do contrato com o governo cubano para os libertar, bastaria conceder-lhes dupla nacionalidade ou o estatuto de refugiado político e contratá-los directamente para trabalharem no SNS brasileiro.
Para os que, mesmo sem terem até agora iniciado qualquer procedimento formal para tentar permanecer no Brasil, desejem aproveitar esta oportunidade para permanecer, a mesma consequência. É a oportunidade de libertação, mas não seria necessário o governo brasileiro rescindir o contrato com o governo cubano para os libertar.
Para os médicos cubanos que, por ter rescindido o contrato com o governo brasileiro, o governo cubano mandar regressar antecipadamente a Cuba, é uma oportunidade de ganhar melhor e juntar dinheiro para eles e para as famílias durante uma missão no estrangeiro para a qual se candidataram e conseguiram ser escolhidos que é terminada prematuramente. Vão perder dinheiro. E vão conquistar alguma liberdade ao libertarem-se desta escravatura a que estão sujeitos no Brasil com as famílias reféns em Cuba? Não, vão continuar a ter a mesma falta de liberdade que têm e sempre tiveram e as famílias vão continuar a ser impedidas de viajar como sempre foram e são enquanto eles estão no Brasil. Se eram escravos e as famílias reféns, vão continuar a ser escravos e as famílias reféns. Terão danos e não terão quaisquer benefícios a compensá-los.
Tudo junto, a rescisão do contrato com o governo cubano para colocar médicos no Brasil ao abrigo do programa "Mais Médicos" vai beneficiar um número de médicos cubanos previsivelmente muito reduzido, e cujo problema se poderia resolver com medidas alternativas directamente dirigidas a eles, e vai prejudicar financeiramente e no percurso profissional todos os outros sem lhes incrementar em nada a liberdade. Para eles a bala da Roleta Russa está mesmo na câmara.
Significa isto uma grande trapalhada do presidente Bolsonaro que anunciou uma medida política voluntariosa com a intenção declarada de proteger os médicos cubanos que estão a trabalhar no Brasil mas que acabará por prejudicar a esmagadora maioria deles, para além de prejudicar milhões de utentes?
Não.
Como eu tinha avisado na semana passada, a preocupação com o bem-estar dos outros é sempre a primeira que se deve evidenciar quando se fazem reivindicações populistas, mas não é a que motiva realmente as reivindicações.
Quando o programa "Mais Médicos" foi lançado pelo governo Dilma em 2013 o então deputado federal Jair Bolsonaro exigia ao governo que não permitisse a vinda de familiares dos médicos cubanos que o governo brasileiro autorizava no contrato.
O deputado justificava essa exigência insinuando que a autorização para os médicos cubanos virem acompanhados de familiares resultaria numa verdadeira invasão do Brasil por milhares de agentes do governo cubano, que ele estimava em setenta mil. Se a preocupação dele era fundamentada ou uma teoria da conspiração delirante não é importante avaliar aqui. Mas a preocupação não era certamente o bem-estar das famílias dos médicos cubanos, agora designadas por reféns do regime cubano a quem ele exige que lhes permita viajarem para o Brasil, era, pelo contrário, impedir que entrassem no Brasil.
Mas ele entretanto podia ter mudade de ideias, e ter evoluído de uma preocupação securitária talvez paranóica para uma sensibilidade social ao bem-estar dos médicos e das suas famílias negado pelo regime cubano. Podia, mas não mudou.
Ainda em 2016, já tinha caído o governo Dilma, ele exigia a sujeição dos médicos cubanos a um exame à Ordem dos Médicos brasileira para comprovarem as suas competências e, deste modo, o governo brasileiro poder expulsar alegados "médicos" que eram na realidade agentes ou militares cubanos colocados no Brasil para provocar o caos no país depois de ocorrer um atentado islâmico. Se a preocupação dele era fundamentada ou uma teoria da conspiração delirante não é importante avaliar aqui. Mas a preocupação não eram certamente com os direitos laborais e sociais dos médicos cubanos, era, pelo contrário, a de encontrar um modo de os expulsar do Brasil.
Resumindo, encontramos aqui bem tipificados alguns ditados portugueses.
Se a ambição de quem formulou ou concorda com as medidas propostas pelo presidente Bolsonaro para proteger os direitos laborais e sociais dos médicos cubanos é realmente proteger os direitos laborais e sociais dos médicos cubanos, o melhor é deixar estar como está, porque o que está em curso não os vai proteger, vai-os penalizar sem lhes oferecer em contrapartida qualquer incremento de liberdade. "De boas intenções está o Inferno cheio".
Mas a ambição real destas medidas não é proteger os direitos laborais e sociais dos médicos cubanos, e provavelmente também não será neutralizar uma conspiração imaginária de agentes cubanos no Brasil, será certamente a de iniciar um ciclo de reversões simbólicas de medidas simbólicas do governo pêtista para sinalizar aos brasileiros que o Brasil está a mudar, e para melhor. "Gato escondido com o rabo de fora".
E num balanço global isto vale os custos que terá? Para os médicos cubanos no Brasil, não.
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