O bairro, se assim lhe podemos chamar, fica na zona mais cara do Porto. Em lotes de dimensão razoável, os edifícios de habitação atingem com frequência os 15 andares. São volumes dispersos, de aspecto rico, espaçoso, e desinteressante, limpos de adornos e revestidos de materiais decentes, com áreas abertas nos intervalos. As manchas de verde, geralmente bem cuidadas, não chegam a formar jardins. Pelo meio sobrevivem meia dúzia de moradias. De alguma maneira, todo o conjunto consegue apresentar-se correcto, hesitante e desordenado. Para todos os efeitos, é um bairro residencial sem grande história – mas dos bons.
A coisa foi construída naquele bairro. Ocupa um terreno de inclinação relativamente suave, descendo em direcção à foz do Douro. Souto Moura voltou-lhe as costas para a vizinhança. Escolheu dois compartimentos e virou-os para uma paisagem, suponho, magnífica - cada um no seu eixo, evitando a obstrução visual dos edifícios que tinha em frente. Rematou estes compartimentos com paredes de vidro, dando-lhes o aspecto de aparelhos de televisão (os grandes arquitectos têm estas subtilezas). Em volumes geometricamente simplificados, que se intersectam num corte quase infantil (tal é a lógica dos seus propósitos e o despudor com que encara as convenções), a “casa” existe com uma identidade totalmente autónoma. Somos informados que é uma casa, mas nada no objecto nos permite chegar a essa conclusão. Está ali, num bairro do Porto, mas podia estar em Tóquio, em Narvik, ou nos arredores de Estremoz.
Para o autor deste projecto, a relação com o lugar é interpretada exclusivamente de dentro para fora. O exterior, o que já lá estava, só conta na medida em que possa servir o interior. Souto Moura separa a área envolvente em duas categorias: a paisagem (que é a parte boa) e o resto do bairro (onde vivem os outros, que é a parte má). E Souto Moura não desce à humilhação de submeter a superioridade do seu risco ao entendimento e aos costumes dos brutos: eles fazem as casas deles à maneira e à medida das suas vidas primárias. É um mundo diferente, estreito e banal, com que Souto Moura (e os seus iniciados) não querem ter contacto.
Para Souto Moura, a paisagem é importante desde que se possa extrair dela um benefício próprio; mas não é importante perceber como é que a construção altera e condiciona a área envolvente, como é que o objecto é percebido, até que ponto é que a obra aceita ou recusa, integra ou despreza, despótica e sobranceira, o prazer e os costumes dos outros. Não é indiferente que o presente de Souto Moura à humanidade tenha custado cerca de 4 vezes o seu valor de mercado; mesmo porque a humanidade já o pagou.
Souto Moura sabe, como qualquer arquitecto é obrigado a saber, que a arquitectura é sempre uma imposição. Deve ser, por esse motivo, um exercício de compromisso. E a atitude educada é dar pelo menos tanto quanto retira. É procurar que a sua presença não seja um fardo. É entender e falar pelo menos uma parte da linguagem comum que faz de cada autor um membro da comunidade – e não um fanfarrão. O arquitecto que se dá ao respeito projecta para o cliente no contexto da cidade. Não projecta para se “expressar”, segundo o seu sentimento ou a sua emoção - que só a si dizem respeito. Nem projecta homenagens a si mesmo e à importância que imagina ter.
O que se fez com a “Casa” Manoel de Oliveira foi uma desconsideração. O suposto habitante (como é natural) recusou morar nela. E agora ninguém a quer. De resto, o próprio tempo (como é hábito) encarregou-se de deixar à mostra a moral desta história: se ao artista não lhe interessa obter o respeito dos outros, caminha confiante para merecer deles o desdém.
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