Quarta-feira, 23 de Julho de 2014

Dia Nacional do Perito

 

 

Eu propunha soluções mais participadas. O governo alugava uma cave em Algés. Daquelas com janelas à altura das peúgas que passam na rua, geralmente ocupadas por armazéns de contrafacção ou escritórios de linhas eróticas de valor acrescentado. Começava por lhe aplicar uma obra de restauro, que consistia em pintar todo o interior de verde chroma (paredes, tectos, portas, móveis, tudo), como se usa no cinema. Com a correspondente portaria, ficava estabelecido o Gabinete de Estudos.

 

A seguir mandava fazer bonecos de papelão com as fotografias em tamanho natural de todos os parceiros sociais. O de Arménio Charles levava uma camada reforçada de verniz de alto brilho nas zonas da testa e do queixo, para ficar tal e qual. Em sistema de turnos, ia nomeando peritos para presidir a Comissões constituídas por eles mesmos e meia dúzia de personagens fictícias, representadas por figurantes sorteados entre todos os gabinetes ministeriais. Cada equipa instalava-se, digamos, durante 15 dias e escolhia uma política pública para aperfeiçoar. Durante o meio dia da manhã, recebiam e respondiam a telefonemas dos telespectadores dos programas de antena aberta. Da hora do almoço em diante intrigavam com jornalistas.

 

Em cada momento eram escolhidos os parceiros sociais adequados à reportagem. Para o efeito, o senhor ministro Maduro, destacado para o local, encarregava-se de retirar da despensa os respectivos bonecos, colocá-los a jeito, e voltar a arrumá-los no fim dos trabalhos. Sobre o chroma, e em pós-produção, seriam projectadas bonitas imagens dos interiores de palácios ucranianos reunidas antes da ocupação.

 

Uma vez por ano, os contribuintes elegiam a sua equipa favorita de entre as 24 disponíveis. Cada contribuinte dispunha de um número de votos calculado pelos cupões atribuídos a concurso no Portal das Finanças, de acordo com as facturas registadas. Como é evidente, acabava-se com o sorteio dos Audis (que nunca foi uma boa ideia). Após um período de telefonemas, rigorosamente acompanhado por um representante do Governo Civil enfiado num fato fora de moda (como é de rigueur), apurava-se o perito que os portugueses queriam homenagear.

 

No dia previsto, feriado nacional, alugava-se o Terreiro do Paço ao dr. Costa. O aluguer consistia numa encomenda de rissóis de berbigão, confeccionados pelo próprio segundo a sua receita de família e em número suficiente para dar de lanchar a todo o povo que quisesse juntar-se à festa. A equipa chegaria ao centro empoleirada numa carroça puxada pelos 3 peritos mais votados, rodeada por uma escolta de campinos ribatejanos.

 

Com recurso a um sólido sistema de roldanas, os peritos (presos pelos pés) seriam içados ao palanque e primorosamente maquilhados para uma emissão em directo. Um cabeleireiro transexual, recrutado nas oficinas de reinserção do Estabelecimento Prisional de Pinheiro da Cruz, ficaria encarregado de lhes ornamentar as cabeças com penteados alusivos à selecção portuguesa de futebol. Após esta homenagem sentida, um grupo de aposentados cantava “ó pavão, lindo pavão” enquanto refrescava o segundo e terceiro classificados com esfregonas previamente mergulhadas na gordura de fritar os rissóis.

 

O segundo classificado tomava posse como Secretário de Estado do Empreendedorismo, Criatividade, e Inovação; o terceiro como Comissário Europeu para a mesma pasta.

 

A jornalista Ana Lourenço aguardava impaciente pela sua oportunidade, quando lhe seria disponibilizado o perito-mor para entrevistar. De olhinho insinuante e beicinho vulnerável, levantava 2 ou 3 assuntos fundamentais e, quando não conseguisse mais segurar os seus impulsos, rapava de uma motosserra que trazia guardada na carteira e desmontava o campeão numa pasta informe de sangue, ossos, e cabelos, para dentro de um alguidar. Da multidão soltavam-se “bravos”, “vivas”, e fogo de artifício.

 

A parte protocolar das cerimónias seria encerrada com o discurso de um sociólogo prestigiado, tratando Portugal por “tu”. A festa prolongava-se noite fora numa borracheira colectiva, animada por canções de Charles do Carmo e outros bardos premiados. No dia seguinte, perante os vestígios e os eflúvios deixados das comemorações, os funcionários do lixo faziam greve.

 

Mas lá está; se eu mandasse no país isto ia de outra maneira.

 

publicado por Margarida Bentes Penedo às 17:18
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