Sexta-feira, 2 de Setembro de 2016

Dicionário de Marcelo (5)

Eu bem sei que, quando se mete a matemática ao barulho, as coisas perdem o encanto que podem ter quando são interpretadas à luz da fábula, do conto moral, ou da poesia.

Mas, num país com um PIB anual de 180 mil milhões de euros, um deficit de 2,5% do PIB ascende a 4,5 mil milhões, e um de 3% a 5,4. E a DGO publicou os números da execução orçamental de Julho, e o deficit ia em 4,98 mil milhões de euros. De modo que, para o deficit no fim do ano ficar em 2,5% do PIB, basta o governo conseguir um excedente orçamental de 480 milhões nos últimos 5 meses do ano. E para conseguir ficar abaixo dos 3%, basta não ultrapassar um deficit de 420 milhões nos últimos 5 meses.

Fica bem ao Marcelo manifestar mais uma vez a sua confiança inabalável na capacidade de o governo do António Costa, cuja relação com a matemática só é batida aos pontos pela relação com a verdade, atingir a meta orçamental de 2,5% de deficit, ou no pior dos casos ficar abaixo dos 3%, limite a partir do qual pode haver sanções comunitárias por violação do tratado orçamental. O presidente é inegavelmente um bom cristão, além de católico devoto, e a caridade é uma qualidade sem a qual ninguém é bom cristão.

Mas, depois de deixar acumular 4,98 mil milhões de euros de deficit nos primeiros sete meses do ano, nem no domínio do conto fantástico se pode acreditar que o governo tem capacidade de gestão, política e orçamental, para obter nos últimos cinco meses um excedente de pelo menos 480 milhões ou mesmo um deficit inferior a 420 milhões. Nem no dos milagres, em que nem toda a gente acredita mas o Marcelo tem legitimidade confessional para acreditar.

Posto isto, o que disse exactamente o Marcelo?

  • "Eu acho que todos os caminhos são arriscados. Mas só no final do ano é que nós em rigor poderemos saber se este caminho teve o sucesso que o Governo esperava ou não".

É verdade. No final do ano é que se sabe ao certo se as metas para o final do ano foram atingidas.

  • "Vamos ver qual é o balanço do ano. No final do ano é que nós poderemos dizer se [o crescimento] fica muito muito longe de 1,4%, que já é uma meta revista pela Comissão Europeia, quão longe se fica. E, sobretudo, a grande prioridade, além do equilíbrio da balança de pagamentos, que é o equilíbrio no Orçamento, se é atingida ou não".

Também é verdade, pelos mesmo motivos.

  • "Se os indicadores que entretanto existem de aumento de actividade económica se confirmarem, no final do ano o crescimento pode situar-se no 1% ou acima de 1%, portanto, mais perto de 1,4%, que é o que diz a Comissão Europeia ... Eu disse na ocasião, e mantenho, que entre 1% e 1,4% é mais realista do que 1,8% que se falou no início do ano".

Também é verdade. Se os indicadores de aumento da actividade económica se confirmarem, o crescimento poderá ultrapassar os 0,9% actualmente verificados. Se e só se. E, se o crescimento for inferior a 1,4%, é mais realista uma previsão entre 1% e 1,4% do que uma previsão de 1,8%, qualquer que seja o valor real atingido, por efeito puramente aritmético.

  • "Um factor um pouco estranho nas contas ... o facto de o emprego aparecer a subir mais do que aquilo que os números do PIB mostram ... Aqui, de duas uma, ou afinal o emprego não está a subir tanto quanto isso e os números não são verosímeis, ou está mesmo a subir e então isso quer dizer que o PIB pode subir para além daquilo que parecia ... Vamos ver".

Também é verdade. Ou o crescimento do PIB vai acompanhar o dos números do emprego, ou os números do emprego não são verosímeis, o que significa, em linguagem diplomática de presidente, que estão a ser aldrabados, e o crescimento do PIB não os vai acompanhar.

  • "Agora, continuo a dizer que é preciso uma grande contenção orçamental, é preciso que se confirme esta sensação que temos com o turismo de que o terceiro trimestre foi mais positivo economicamente do que o primeiro e do que o segundo. Vamos esperar".

Mais uma verdade. É preciso contenção orçamental, mesmo que se saiba que a reposição dos rendimentos, a redução de horários e a impossibiliadade de deixar aumentar indefinidamente as dívidas aos fornecedores são factores de expansão orçamental comparativamente com o primeiro semestre, e é preciso confirmar a sensação de que a economia pode crescer mais para verificar no fim do ano se ela cresceu mesmo mais. [E vamos deixar para outra ocasião a discussão de o terceiro trimestre poder correr normalmente melhor que os dois primeiros mas, em termos de crescimento, se comparar com o terceiro trimestre anterior, que também correu melhor que os dois primeiros anteriores, pelo que não se podem tirar conclusões do mero facto de ele correr melhor que os outros].

Tudo junto, a confiança inabalável do presidente Marcelo na capacidade de o governo atingir as metas afinal parece não mais do que um enumerar pelo comentador Marcelo de silogismos do modelo "se esta premissa se verificar, e aquela premissa se verificar, então verificar-se-á esta conclusão", sem nenhuma profissão de fé na validade das premissas que determine, por seu lado, fé nas conclusões que delas se extraem.

Ou sou eu que ando com dificuldade de interpretar textos que até me parecem relativamente simples, ou a manifestação de confiança inabalável do presidente na capacidade do governo tem mais de jogo de palavras profano do que de caridade cristã.

Mas a verdade é mesmo que o recurso à matemática, nomeadamente à lógica, tira toda a piada à coisa...

publicado por Manuel Vilarinho Pires às 22:00
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1 comentário:
De cristof a 3 de Setembro de 2016 às 17:50
Vou guardar este texto e decora-lo, para quando chamar aldrabão a alguém e precise de ser diplomático.

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