Tenho duas gavetas cheias de correspondência com serviços públicos, autoridades e companhias majestáticas para provar que sempre fui o que os americanos, com a sua expressividade de povo feito com o lúmpen de outros povos, chamam a pain in the ass.
Houve um tempo em que supus que a administração pública era reformável; que, havendo vontade política, os hábitos iriam lentamente mudando; e que a pressão dos meios de comunicação social, mais tarde também das redes sociais, iria fatalmente ter como consequência que os abusos, os atropelos, os ridículos, a arrogância dos poderzinhos inimputáveis, das câmaras, das polícias, da Fazenda, da Segurança Social, das autoridades disto e daquilo, e de quanto pequeno ou grande funcionário julga que encarnou nele a majestade do Estado e o conhecimento dos arcanos das leis - seriam coisa do passado.
Quando veio a troica abençoada, então, rejubilei: é desta que a caranguejola do Estado se vai reformar, eliminando serviços, simplificando legislação, removendo obstáculos, e introduzindo critérios de avaliação pelos utentes (horrível palavra que a modernidade de pacotilha adoptou) e sanções para os descasos, abusos e prepotências.
Ninguém que conheça a Administração há muito, por ser obrigado a lidar com ela, ousará dizer que está, agora, como estava há quarenta anos.
Está melhor, em algumas coisas: a pequena corrupção (do contínuo, do polícia, da secretária, do pequeno funcionário) quase desapareceu; e encontram-se com frequência funcionários conscientes de que estão ao serviço do público. Mas adianta pouco: custa mais, é muitíssimo mais intrusiva, as coimas são demenciais, a legislação incompreensível e contraditória, os prazos uma curiosidade que ninguém respeita - e a inimputabilidade permanece. Da troica nem falemos, que pagar muito mais seria talvez inevitável, mas não o era a demoníaca diminuição dos direitos do cidadão e das empresas que se julgou necessária perante a Administração em geral, e Fiscal em particular.
Tanto que aqueles que viveram já o tempo suficiente têm saudades da cunha e da notazinha de cinco ou dez contos, que dantes oleavam processos e permitiam atalhos. Agora, a máquina é muito mais complicada e lenta. E óleos há menos porque os responsáveis têm medo de denúncias e o pequeno funcionário mudou de mentalidade: agora ofende-se se lhe deslizam alguns euros para dar à manivela.
De vez em quando, raramente, vem um político qualquer que resolve melhorar as coisas: ou com as ambições ingénuas do simplex, que queria melhorar processos, mas aumentando a intrusividade do Estado; ou directamente, através de simplificações legislativas. E deixa obra, que a administração em devido tempo demolirá, porque é da natureza das burocracias aumentar o seu poder, a menos que se lhes corte permanentemente a cabeça.
Com frequência, o nosso Estado grotesco mostra, em pequenas coisas, a sua estúpida cabeça: e de vez em quando, por razões misteriosas, chega à opinião pública um daqueles incidentes com um lado cómico: há dias, um cidadão foi notificado para pagar um cêntimo de dívida. A notícia saiu, uns riram-se, outros indignaram-se, mas vai alguém ser punido? Claro que não - aquilo foi coisa do computador, o qual, como é geralmente sabido, não pode ser nem despedido nem objecto de processo disciplinar.
Além do mais, não há qualquer novidade neste caso: é tão natural cobrar um cêntimo como emitir cheques de zero escudos.
Foi o que me aconteceu, na única vez na vida em que estive de baixa (os gerentes de sociedades não tinham direito, então, a baixa médica nos primeiros 90 dias de doença, uma pérola da legislação gonçalvista), conforme se pode ver pelas cópias abaixo.
Enviei à época uma carta ao Centro Regional, que rezava:
Junto devolvo dois cheques, depois de devidamente endossados, relativos respectivamente às ordens de pagamento x e y, ambas de 27 de Março último, e de cujas importâncias faço oferta aos Serviços Sociais desse Centro, não tanto para retribuição das atenções de que tenho sido alvo, mas sobretudo como pequena manifestação de apreço e estima.
O Centro em questão nunca me agradeceu o gesto. E como tivesse reclamado junto da Direcção-Geral, e depois na Secretaria de Estado, e finalmente para a Ministra (era Leonor Beleza, muito novinha, Deus a guarde) acabei por receber o que me tinha sido negado. Mas não me fiquei a rir, que quando aquela Senhora deixou de ser ministra fui notificado para repor tudo, com juros, sob ameaça de raios e coriscos.
Mas não importa, não fiquei escarmentado. Tanto que, se o cidadão referido na notícia quiser, ofereço-me para lhe redigir um texto onde informe a autoridade sobre o local exacto onde deve enfiar a notificação.
Não é que adiante. Mas sabe bem.
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