No feriado do 25 de Abril, da parte de tarde, estive no meu quintal a transferir compostagem de um lado para outro, razão principal porque não ouvi os discursos. De toda a maneira, motivos de força maior desta natureza têm-me impedido há muito de os ouvir, salvo num ocasional resumo nas notícias e mesmo assim apenas aqueles, do lado direito do espectro, de onde pode, em momentos de sorte ou acaso, vir alguma coisa não direi memorável, mas ao menos apropriada e justa.
As portas que Abril abriu foram duas que valem a pena, a da liberdade de expressão e a da possibilidade periódica de despedirmos quem nos pastoreia (na realidade a motivação não era abrir porta nenhuma mas fechar a da guerra colonial, porém deixemos esquisitices); e outras que melhor fora terem continuado fechadas, como as da cave onde se guardava o ouro do Banco de Portugal, a do défice, do calote, do crescimento anémico, da dívida pública sem precedentes, da estrangeirização das grandes empresas e dos bancos, da destruição quase total dos capitalistas de substância e portanto da capacidade de investimento indígena, da moeda própria (que era uma válvula de segurança que protegia a economia do excessivo asneirol das decisões de política económica), e a da infantilização de uma parte considerável dos cidadãos, que é hoje incapaz de conceber a sua vida sem depender do Estado para o ordenado, a pensão, a saúde, e até mesmo as regras de comportamento nos aspectos comezinhos do dia-a-dia, cada vez mais opressivas.
Não é impossível, ainda que pouco provável, que o défice real (isto é, sem aldrabices) venha a estancar; que o calote, ou seja, o quarto resgate, não venha a materializar-se; e que o crescimento, à boleia do crescimento dos outros e do turismo, pareça durante algum tempo menos tíbio. Mas, digam os liberais o que disserem, não é a mesma coisa sermos explorados por empresas monopolistas nacionais ou estrangeiras, porque no segundo caso os lucros não ficam cá; não é garantido que a gestão bancária internacional seja menos inepta que a portuguesa, nem que o BCE seja menos parasitário, ou mais lúcido, ou mais competente, que a filial portuguesa, que aliás mantém e manterá a mesma gordura que tinha quando servia para alguma coisa; e que, finalmente, os cidadãos tão ferozmente europeístas não mudem de opinião se a UE, por se estar a esfarelar ou outra razão, deixar de pingar. Porque ela pinga, pinga todos os dias, e é com esse bodo, do qual já se espatifaram desde 1986 incontáveis biliões, que se sustentam milhares de parasitas, se investe alguma coisa, e se juntam tostões do Orçamento do Estado para o país se cobrir de realizações que, com a devida propaganda, levam o cidadão a acreditar que é apenas uma questão de tempo até ficarmos como a mítica Dinamarca.
A formação da opinião, porque é feita geralmente por dependentes directos ou indirectos do mesmo Estado, que entretanto deixou ele próprio de conceber a sua perpetuação fora do quadro da União Europeia, é quase sempre de índole europeísta e esponjosa, no sentido de absorver e veicular quanta ideia moderna igualitarista, burocrática, revolucionária nos costumes, e estatista nas escolhas, anda no ar internacional.
Na prática, Portugal é menos independente dos poderes de Bruxelas ou Frankfurt (não falo de Estrasburgo porque aí se acolhe a secção dos treteiros pagos a peso de ouro para aceitarem fingir que mandam ou representam alguma coisa) que o Montana dos de Washington; e os únicos verdadeiros patriotas que restam são quase exclusivamente uns senhores que só o são porque já não há URSS para liderar o movimento comunista internacional, caso em que seriam abjectos agentes a soldo de uma potência estrangeira. Estes, em conjunto com os filhos e netos de Maio de 68, que se distinguem dos primeiros pelo acne, o práfrentex dos costumes, e a doença infantil da revolução, têm por ambição transformar Portugal numa Venezuela um pouco menos miserável, com um pouco mais de história e de hábitos de civilização. E entretanto vão vivendo com um conforto razoável, à sombra dos jogos que a democracia que desprezam, e do PS que oportunisticamente os usa, lhes proporcionam.
Este nó será desatado daqui a vinte meses ou vinte anos: a casta dirigente europeia não quer nenhuma reforma que lhe diminua os poderes, e por isso contará as derrotas, como o Brexit, como um incentivo para reforçar a integração, e as vitórias, como a possível de Macron, como a confirmação do bem fundado do seu caminho. E o bom povo português no momento próprio comerá a erva que tiver que comer, e apertará o cinto em quantos furos forem necessários, ao mesmo tempo que se tiver um culpado que possa plausivelmente designar o cruxificará, e cairá de joelhos perante o salvador da circunstância, se houver, ou desatará à batatada, se não aparecer.
Pode ser assim ou de outra maneira mas entretanto é preciso viver. E regresso aos discursos porque tropecei na notícia sobre este, da candidata do PSD à câmara de Lisboa, e, movido pela curiosidade, fui ouvi-lo.
Foi o último de entre os dos representantes dos partidos, e enquanto procurava não pude evitar ouvir partes do impressionante chorrilho de banalidades com que cada um entendeu útil assinalar a data. Com o de Teresa pasmei: Portugal não tem um problema de impostos a menos, tem um problema de impostos a mais; não tem um problema de evasão fiscal, nem de offshores, tem um problema de falta de capital para evadir; não tem um Fisco ineficiente, tem um Fisco terrorista; não tem corrupção a mais por os locais terem uma especial propensão para a corrupção, tem corrupção a mais porque o polvo do Estado, que patrocina, subsidia, autoriza, proíbe, atrasa, licencia, legisla diarreicamente, está por toda a parte; e tem uma desconfiança do cidadão em relação à classe política porque o instituto do enriquecimento ilícito, que poderia servir para a diminuir, evitando o arrastar inadmissível de casos como o de Sócrates ou Dias Loureiro, é apresentado como devendo ser aplicável à generalidade dos cidadãos, o que nem o Tribunal Constitucional, um órgão caracteristicamente de esquerda, pôde aceitar. O PSD é isto: socialistas mais sérios e mais competentes do que os genuínos, com um spin muito menos eficiente e mais escrúpulos na manipulação da comunicação social ̶ mas iguais na essência.
Toda a legislação para combater abusos dos grandes serve, em Portugal, para perseguir os pequenos, sempre que implique inversões do ónus da prova, diminuição de direitos e reforço dos poderes da Administração. Diz-se que uma imagem vale mais do que mil palavras, e digo eu, para ilustrar o ponto, que 500 palavras, se verdadeiras e sentidas, como estas aqui, mais do que um ensaio. E é no dia da liberdade que sai um discurso destes?
Portugal é, por razões que aqui não cabem, um país de esquerda. Essas razões creio não ter dificuldades em percebê-las, mas por que motivo pessoas do PSD e do CDS defendem (e põem em prática, quando no poder) ideias que a esquerda coerentemente subscreve é atitude cujo racional me escapa. Será para ganhar eleições?
Se é, trata-se de um equívoco. O eleitorado, e bem, acaba sempre, a prazo, por preferir os originais às cópias. E não vale a pena ser governo, mesmo que seja apenas duma câmara, para se fazer o contrário daquilo que se acredita ser o bem comum. Ou então acha-se que o bem comum é o mesmo quando a informação de que se dispõe é a mesma, como entendia o infeliz Cavaco, que se fartou de ganhar eleições porque as circunstâncias históricas lhe correram de feição e acreditava genuinamente - lá está - nas tolices que expelia.
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