Num excelente ensaio escrito há alguns meses, Vítor Bento explica por que razão o Brexit era inevitável e porque, se não tivesse tido lugar como resultado de um referendo, aconteceria mais cedo ou mais tarde. Nas suas palavras: "Não se pense que a decisão de deixar a UE foi, como tem sido dado a entender, um acidente do processo democrático ou o resultado de um conflito de gerações ou de níveis educacionais. Longe disso. Os factores mais imediatamente influentes naquela deliberação podem ter sido circunstanciais, como a crise dos refugiados e o receio de invasões migratórias, e podem ter-se manifestado nos referidos epifenómenos geracionais ou de educação escolar, mas o resultado seria inevitável, mais cedo ou mais tarde".
O escopo do ensaio não é porém explicar o Brexit; ocupa-se dele para, sobretudo, avaliar as consequências para a União Europeia e a União Económica e Monetária. E como tanto uma como outra, a primeira mais no plano estritamente político, e a segunda mais no plano estritamente económico, estão com a saúde abalada, ambas com ou sem Brexit, Bento aproveita para fazer a história da construção comunitária, identificar os problemas da União e da Zona Euro e sugerir os caminhos que se devem trilhar para os resolver.
Sobre a União, Vítor Bento estima que "fica [assim] mais dependente de terceiros – EUA e, até certo ponto, o próprio RU – para a sua própria defesa e dos seus membros, contradizendo, e desvalorizando, a relevância estratégica que o projecto de integração pretende assegurar". E rejeita aparentemente o fortalecimento da capacidade militar, que seria necessária para a UE "mitigar aquela dependência e preservar a sua relevância estratégica" porque "isso dificilmente será conseguido sem fortalecer a da Alemanha, o que não deixaria de gerar intranquilidade à sua volta".
Esta é de facto uma boa razão. Mas mesmo que a Alemanha não fosse inevitavelmente, num exército europeu continental integrado, o elemento preponderante, a ideia de que fosse possível neste momento histórico, e em qualquer outro futuro que a imaginação alcance, fazer um exército europeu credível e eficaz, com o que isso significaria de amálgama de histórias, identidades e recursos, sem que em algum momento o edifício abrisse brechas, é simplesmente – sem ofensa para o ensaísta – lunática. Para defesa daquilo que genericamente se pode designar como valores do Ocidente existe já um exército – é o da NATO, por muito que um dos seus membros, a Turquia, tenha as suas credenciais democráticas, por estes dias, erodidas. Que a nova administração americana pareça querer exigir que os países europeus contribuam mais equitativamente para aquela organização, e que esta não possa defender pontos de vista substancialmente diferentes dos que os EUA tenham é decerto uma grande maçada. Que a nós portugueses não nos deveria incomodar excessivamente, tendo em vista a longa prática de depender militarmente, para a nossa sobrevivência como Nação, do superpoder do dia.
So much para o exército europeu, que de todo o modo nunca passou de um delírio de europeístas fanáticos, com perdão da redundância.
Resta o problema do Euro, que "dificilmente pode ser apresentado como uma história de sucesso, sobretudo para os participantes menos ricos e que viram aumentar o fosso económico que os separa dos mais ricos". Bento acha, como Wolfgang Munchau, que a solução mais abrangente poderá passar por “uma eurozona mais integrada e uma UE menos integrada”. "O que, em última instância, poderia ser suficiente para reverter o próprio Brexit", comenta, com uma dose apreciável, provavelmente inconsciente, de wishful thinking.
Concretizando: "Terá que haver uma qualquer forma de união fiscal – seja através de um orçamento 'federal', seja através de um sistema institucionalizado de transferências fiscais –, assim como terá que ser implementado o pilar em falta da união bancária – a garantia comum de depósitos – e que implicará uma outra forma, pelo menos implícita, de 'mutualização' de recursos. Ora, estes passos não serão dados sem serem acompanhados de uma qualquer forma de 'federalização' do poder de decisão sobre o uso dos recursos 'mutualizáveis'. E não será possível prosseguir por muito mais tempo o desalinhamento de preferências sociais que tem marcado o funcionamento da zona euro e que muito contribuiu para a crise de que ainda se não conseguiu sair totalmente".
Traduzindo, que neste passo Bento cede à tentação de não ser claro, decerto por imaginar que para dizer coisas desagradáveis é preciso embrulhá-las num paleio ininteligível: Entre nós, há que deitar fora o PCP, o BE e o PS, no que toca a política económica e financeira, ficando o Governo, e sobretudo o Parlamento, amputados de competências legislativas naquelas áreas; e, por exemplo na Alemanha, há que forçar a despesa e o consumo, o que quase explicitamente se diz no final do ensaio.
Por mim, não vejo com bons olhos a eliminação do regime democrático em troca da gestão racional da finança e da economia, mesmo que o preço seja um quarto resgate, e até um quinto, porque acredito nas virtudes pedagógicas do falhanço: erradicar a preponderância das ideias de esquerda entre nós pode fazer-se com o sangue, suor e lágrimas das consequências delas, não se pode fazer com decisões acertadas de estrangeiros. Ainda que o fossem, as decisões, o que com o actual BCE, e países como a França e a Itália, ou a tresloucada Espanha do Podemos, é menos do que certo.
Já os meus concidadãos decerto aceitam tudo, desde que não sejam contribuintes líquidos e possam conservar o galo de Barcelos, o Fado e a nacionalidade do passaporte de Ronaldo. Mas imaginar que Franceses, Italianos e tutti quanti são como nós, que este programa não dará origem a novos exits e que, por exemplo, as denunciadas aldrabices francesas do défice, de conluio com a Comissão, tiveram lá fora o mesmo descaso que mereceram cá dentro, releva de cegueira.
A mesma cegueira que levou à criação do Euro. E que, agora que são muitas as vozes dos que a patrocinaram a dizer que a arquitectura não era a indicada e que bem avisaram (baixinho, tão baixinho que ninguém ouviu), leva a que uma pessoa superior como Vítor Bento não queira ver que a União Europeia é um cadáver adiado porque a doença que o consome não é falta de integração - é o excesso.
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