Esta é a imagem, e cada um é livre de usar os critérios que entende e com que se identifique melhor, e podem ser diferentes dos meus, mais violenta da história do cinema.
O filme é, estão a reconhecer, "Feios, Porcos e Maus", de Ettore Scola.
Podia ser um filme violento que retrata sem dó nem piedade a miséria abjecta a que são sujeitos os habitantes de um bairro de lata romano nos anos 70.
Mas não é. Em vez de olhar para eles numa óptica neorealista de vítimas da sociedade que os exclui, contrapõe-lhe a óptica alternativa de os mostrar como os carrascos que os encarceram a si próprios na sua miséria, tais como um Giacinto Mazzatella capaz de vazar um olho para receber o dinheiro do seguro, e não vale a pena puxarem das calculadoras, um milhão de liras eram cem contos, quinhentos euros actuais, e compra uma caçadeira para defender o dinheiro da indemnização da cobiça da numerosa família que coabita com ela na barraca, gente que se desqualifica permanentemente, que se agride mutuamente sem dó nem piedade, a tiro, se preciso for, mas se o agressor e a vítima trocassem de circunstâncias trocariam também de papéis e agredir-se-iam exactamente na mesma medida, que se rouba mutuamente se e sempre que tiver oportunidade, que abusa sexualmente de quem puder, através da chantagem ou da violência quando o piropo não chega a ser eficaz, gente que abandona a avó na barraca a arder até se lembrar da ser necessária a presença dela para lhe levantar a pensão e a salvar in-extremis com a roupa e o cabelo meio ardidos, em resumo, gente tão miserável moralmente que vive no meio daquela miséria material como peixe na água, e a merece, e por isso não nos desperta a mais pequena ponta de empatia pelo sofrimento por que passa.
O equivalente na política de hoje em dia a um primeiro-ministro que enquanto governante no passado tivesse fechado os olhos à corrupção praticada pelo primeiro-ministro que o tinha escolhido para vice, que enquanto presidente de câmara tivesse acumulado o salário de autarca a tempo inteiro com um salário milionário de comentador na televisão, que tivesse declarado este como rendimento de direitos de autor para o poder acumular legalmente com aquele e ainda ter uma redução substancial no IRS, que tivesse habitado um misterioso duplex de luxo na Avenida da Liberdade detido por um misterioso proprietário a quem a câmara tivesse concedido uma misteriosa licença de ampliação do imóvel que incluiu justamente o duplex que ele habitou, que tivesse o dom da trafulhice e o golpe de rins para conseguir chegar a governar apesar de ter perdido as eleições, que se tivesse rodeado de uma equipa onde sobressaísse um presidente de partido lendário por ter dado emprego público a toda uma família mais extensa que os Mazzatella, ou por ter atribuído bolsas de estudo para tirar o brevet a filhos de colegas do governo regional que liderou, ou um presidente da Assembleia da República que uns anos antes tivesse conspirado com ele e o Presidente da República de então para subtrair um camarada de partido à acção da justiça, ou um governo e instituições tuteladas pelo governo todos preenchidos com amigos e familiares de amigos e amigos de familiares, incluindo quase todos os que tinham participado com ele no anterior governo corrupto, que emblematicamente tivesse escolhido para a sua primeira nomeação política como governante o traidor mais notório e notável da liderança do partido que governava antes e passou à oposição com a ascensão dele ao governo, se Roma não paga a traidores o Giacinto paga, que tivesse colocado o seu melhor amigo a representar o Estado numa negociação onde a empresa para que ele trabalhava tinha interesses e esses interesses acabassem por ser efectivamente atendidos, que tivesse sistematicamente mentido em acordos de cavalheiros em que enganou os cavalheiros que cairam no erro de fazer acordos com ele, que tivessem da ética a percepção colectiva que é tudo o que não seja ilegal.
É preciso conceder que ética é um daqueles conceitos que é mais fácil perceber do que definir, e a definição que ao longo da vida me pareceu mais razoável, ético é aquilo que fazemos em privado e não teríamos vergonha que fosse tornado público, tem como limite de aplicação justamente os Giacinto Mazzatella deste mundo que, por não terem vergonha nenhuma, tudo lhes parece ético. Eles e os Carlos César e os António Costa.
O filme é pois um desfilar de misérias, de traições, de sacanices, tem tudo para ser uma tragédia que nos indigne, mas como todas são cometidas sem vergonha nem remorsos e todas são merecidas por todas as vítimas acaba por ser uma comédia que nos desperta gargalhadas da primeira à penúltima cena.
À penúltima, mas não à última, porque há um ser humano tão normal e decente como qualquer um de nós no meio daquela gente doida. A Maria Libera é uma pré-adolescente de 12 anos da família, que vive com a família na barraca, e é a menina que recolhe as crianças do bairro no mais que se pode assemelhar a um jardim de infância, um recinto fechado por uma rede em que ficam durante o dia encarceradas mas ao abrigo de toda a espécie de acidentes ou tragédias que lhes poderiam provavelmente acontecer naquele bairro ameaçador, antes de ir para a cidade trabalhar a dias ou quando há uma zaragata no bairro que as possa ameaçar, e há-as habitualmente, uma menina que não se mete nas confusões nem nas trafulhices nem nas zaragatas dos outros todos, uma menina que é como se não existisse para eles nem ali, mas apenas para nós. Mas ali.
E na última cena, a da fotografia, a Maria Libera está no estado que se vê. Acabou a comédia e ela foi engolida pelo sistema a que parecia estranha e imune e passou de ser uma de nós para ser um deles. E toda a indignação que não sentimos antes pelo sofrimento que era mais do que merecido por eles nos passa a ser impossível de manter ao longe porque desta vez a vítima passou a ser um de nós.
Pelo que a lição que o "Feios, Porcos e Maus" nos ensina, se tivermos a humildade de lhe prestar atenção, é que não é o facto de sermos diferentes deles que nos garante que seremos diferentes deles. No convívio com a corrupção moral, e às vezes não só moral, que vigora actualmente na sociedade portuguesa e naqueles que escolhemos, mesmo não os tendo escolhido, para nos representarem a governar o interesse público, o mero facto de a desaprovar e os desaprovarmos não nos garante imunidade contra ela. Se não corrermos com eles, um dia ver-nos-emos grávidos da miséria moral que eles promovem.
Depois não digam que não vos avisei.
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