Veio de Paris (na realidade o artigo apenas diz que era uma equipa da France Culture, mas deduzo que se é coisa de Cultura e de la France deve ser de Paris, tal como em Portugal estas coisas costumam ser de Lisboa) uma jornalista "jovem e competente" que entrevistou, entre outras pessoas, Teresa de Sousa, a propósito dos 40 anos do 25 de Abril.
Teresa de Sousa é uma conhecida colunista cujos escritos não costumo ler para além do primeiro parágrafo, pela mesmíssima razão que, se fosse gourmet, não leria a coluna de um especialista que todas as semanas falasse do mesmo prato - no caso de Teresa é a Europa, que nos é servida nas mil formas pelas quais se deve apresentar para que a possamos engolir com geral satisfação.
A jornalistazinha trazia, parece, uma ideia, que outros entrevistados teriam confirmado, de que "estávamos hoje pior do que no 25 de Abril, por causa da crise" - deve ter andado a falar com gente do PCP, ou a beber gins com gente do BE.
Teresa inteirou a moça da vulgata que toda a gente de representação reserva para estes entreactos, a saber que não senhor, estamos muito melhor, credo!, então e os índices de desenvolvimento, e o saneamento, e a taxa de mortalidade infantil, e a escolaridade e, sobretudo, o Serviço Nacional de Saúde...
E concluiu, triunfante: "A crise está a empobrecer-nos de uma maneira que nunca pensaríamos possível. O Governo não respeita nada nem ninguém, quando se trata de arrecadar. A classe média está a pagar a crise praticamente sozinha e a “compressão” dos seus rendimentos é brutal. Tudo isto é verdade, mas todas as crianças vão para a escola com sapatos".
Que a classe média está a pagar a crise não duvido; dos sapatos só tenho algumas dúvidas por imaginar que serão antes sapatilhas; e quanto às alternativas ao que este Governo está a fazer teria algumas coisas a dizer, que todavia receio fossem muito diferentes das europeíces e piedades de Teresa - mas não é o meu assunto agora.
Por trás destas considerações está, fatal, o seguinte raciocínio: a democracia trouxe-nos estas coisas boas; muitas não tínhamos, ou tínhamos em menor grau, nos longínquos tempos da ditadura; e logo é à democracia que devemos estes progressos.
Peço licença para achar que este discurso é uma falácia: comparar materialmente o agora com o dantes para daí deduzir superioridades e inferioridades de regimes não tem qualquer sentido porque todos os países progrediram imenso nestes quarenta anos, quer sob democracias quer sob ditaduras, e o nosso também não ficaria parado ainda que a Ditadura perdurasse; e sendo indiscutível que há mais democracias do que então havia, não é certo que a maior fatia do progresso material tenha vindo delas - a Ásia, o continente que mais cresceu, não é o que mais se recomenda pelas suas credencias democráticas. Aliás, a democrática Europa, pai e mãe do que melhor e pior a humanidade já produziu em termos de ideias políticas, está, relativa e inexoravelmente, a atrasar-se em relação ao resto do Mundo. Fosse eu apreciador de ideias simplistas, e cultivasse confusões entre correlações e causas, e diria que era por motivo da Democracia - mas não digo, nem penso.
O que eu penso é que para ser democrata não é preciso este massacre memorialista sobre os meninos do pé-descalço: Não houve até agora um só dia em que o nosso País progredisse mais do que o fez em qualquer dos dias da década de sessenta, apesar da chuva dos milhões com que desde 1986 nos aspergiram; nem as contas estão feitas sobre quanto nos vai custar em retrocesso e abrandamento aquela parte do progresso que foi feita a crédito; nem as pessoas que, como Teresa de Sousa e eu, têm mais de cinquenta anos, deveriam ter necessidade de esquecer, ou falsificar, os números do passado, para encher a boca com os imaginários triunfos do presente.
Teresa diz o que quer; eu também. E isso, que não conta para o PIB, é o que merecia ser comemorado no 40º aniversário. O resto não.
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