Ontem o parlamento votou, e rejeitou, os quatro projectos do PS, do BE, do PEV e do PAN para despenalizar a eutanásia.
Eu sou a favor da despenalização da eutanásia. Em circunstâncias muito específicas. Quando alguém, seja o cônjuge, um familiar, um amigo, ou mesmo um enfermeiro ou um médico, ajuda a acelerar sem sofrimento a morte de alguém que quer morrer por se encontrar em estado terminal, irreversível, desesperado e em grande sofrimento, e posso repetir que quer morrer, não está a cometer um acto que eu consiga classificar como um crime, nem sequer censurável, mas simplesmente um acto de amor ou compaixão, valores que estão no núcleo daquilo de que se fala tanto actualmente sem sempre se fazer um esforço por se entender o que se diz, os valores humanistas e cristãos que definem a nossa matriz civilizacional. Está, acessoriamente, a correr o risco de vir a enfrentar consequências penais por cometer um acto que é classificado pela lei como um crime, o que acrescenta ao amor e à compaixão um desprendimento algo temerário dos seus interesses pessoais para acudir a quem lhe solicita essa ajuda.
E por mais exercícios de retórica dos conceitos teóricos de defesa da vida ou da liberdade de dispôr dela que se esgrimam, isto não é, aos meus olhos, um crime, é até um acto louvável. E que me atire a primeira pedra por condescender com este crime quem se tenha levantado indignado e saído da sala durante a projecção do filme Voando sobre um ninho de cucos quando o chefe Bromden eutanasiou Randle McMurphy, e que se abstenha de a atirar quem interpretou essa eutanásia a a fuga subsequente do chefe índio da instituição psiquiátrica onde ambos estavam aprisionados como um símbolo de libertação (do comunismo, porque era a opressão do comunismo que o filme metaforizava).
E se à luz da lei um acto louvável é considerado um crime a lei está mal. E devia ser alterada.
Posto isto, obviamente que se fosse deputado à Assembleia de República ontem teria votado contra os quatro projectos.
Porque se a situação específica em que eu defendo a despenalização da eutanásia é coberta por eles, e se foi amplamente usada pelo spin dos proponentes para procurar ganhar a empatia do público para os seus projectos, o que se faria a partir da sua aprovação seria certamente a montagem de uma indústria, pública ou privada, da morte assistida, seja para servir o suicídio em condições mais discretas e menos chocantes do que quando é praticado pelos próprios com os meios a que conseguem deitar mão, seja mesmo para fazer morrer pessoas sem capacidade para impedirem a sua própria morte, porque não há lei que não contenha, por mais cuidadosa que seja a sua formulação, alçapões que possam ser accionados para contornar as suas boas intenções, além de conceder um novo poder ao Estado, o de decidir administrativamente, arbitrando os casos de eutanásia, quem deve morrer e a quem deve ser permitido tentar sobreviver.
E a quem menoriza o risco da intervenção do Estado nos processos de decisão sobre a vida e a morte de pessoas aconselha-se uma reflexão sobre o caso muito recente do bebé Alfie Evans cujo estado decorrente de uma doença neurológica degenerativa incurável foi considerado irreversível pelos médicos do hospital britânico onde estava internado, que consequentemente tomaram a decisão de desligar as máquinas que o mantinham vivo contra a vontade expressa e levada até às últimas instâncias da justiça dos pais, e a quem, adicionalmente, os tribunais negaram a possibilidade de ser transferido para um hospital no Vaticano onde seria mantido vivo enquanto se procurasse uma cura para a sua situação, deste modo decretando a sua morte imediata, e não vale a pena dizer irreversível, porque a irreversibilidade da morte está na sua natureza. Quando o Estado tem legitimidade para decretar a morte de pessoas há mesmo a possibilidade de a vir a decretar, mesmo contra a vontade delas.
Isto para além de esta iniciativa fazer parte do conjunto de iniciativas legais no domínio da engenharia social promovidas por elites muito minoritárias mas muito activistas e muito acarinhadas pelos media que procuram mudar a sociedade à força, quer queira, quer não, quer tenha noção do que lhe está a ser proposto ou imposto, quer não. De uma maneira geral, aquilo que foi baptizado de causas fracturantes que são a base da sobrevivência política do BE desde que tomou consciência que como associação de velhos trotskistas, comunistas, estalinistas e maoistas nunca chegaria a lado nenhum.
Tudo junto, ainda bem que os projectos foram rejeitados.
Mas mais esta iniciativa de definição da agenda política pelo BE, é o BE que lança e dinamiza estas iniciativas e as participações de outros partidos e movimentos decorrem de terem entre eles satélites do BE, como é o caso do PS, ou são meros atestados de vida de existência política, como são os casos do PEV e do PAN, foi também um interessante caso de estudo no sistema político português.
A começar pela posição do PCP. O PCP está arredado do poder em Portugal há mais de quarenta anos mas continua a não ser, como nunca foi, um partido de protesto, mas sim um partido de poder, organizado e pronto a assumir o poder no dia seguinte, fosse em 25 de Abril de 1974, fosse agora, se lhe fosse dada essa oportunidade. E como é um partido de poder é socialmente conservador e não alinha nas modas, nomeadamente na das causas fracturantes. O PCP declarou-se, pois, prontamente e com uma fundamentação muito sólida, contra a despenalização da eutanásia. E defendeu-a solidamente no debate parlamentar através do experiente deputado António Filipe. Votou em bloco contra os quatro projectos.
Mas mesmo o PCP percebeu há trinta anos que o conservadorismo social pode ter custos eleitorais, e enquanto vivemos em democracia do tipo ocidental é por eleições que se chega ao poder, e deixem-me sublinhar que o termo que usei "vivemos" tanto é a primeira pessoa do plural do presente do indicativo como do pretérito perfeito, ou seja, tanto pode significar que ainda vivemos como que já vivemos mas entretanto deixámos de viver porque o acesso ao poder deixou de ser conquistado por vitórias eleitorais, e decidiu abrir um franchise para assegurar uma oferta política mais adequada aos novos tempos, o PEV.
O PEV é uma preciosa jóia de contradições. Nunca concorreu a eleições sem ser em coligação com o PCP, de modo que apesar de manter um grupo parlamentar de dois deputados desde que entrou no parlamento nunca teve um único voto e ninguém pode estimar a sua base eleitoral. Foi criado como um partido ecologista, era esta a causa fracturante dos anos 80 do século XX quando, entre outros assuntos, emergia o debate sobre a energia nuclear, justamente na época em que o descalabro do comunismo soviético também se manifestava em catástrofes ambientais, nomeadamente nucleares. Permitiu ao PCP alargar a cobertura do eleitorado a jovens ecologistas, e com o passar do tempo adeptos das outras causas fracturantes que foram emergindo, e duplicar os seus tempos de intervenção no parlamento por ter passado a ter, não um, mas dois grupos parlamentares aparentemente independentes. Apesar da sua postura quase sempre institucional foi uma chico-espertice a que o PCP recorreu e tem mantido. Uma vigaricezinha legal. Pois o PEV cumpriu o seu objectivo de diversificação de públicos do PCP e apresentou também um projecto de despenalização da eutanásia e votou favoravelmente os quatro projectos.
O CDS foi naturalmente conservador, não frustrou as expectativas de ninguém, e rejeitou em bloco os quatro projectos.
O mais curioso foi que, numa inversão do papel que desempenham tradicionalmente no sistema político português e nos das outras democracias, onde os grandes partidos definem os blocos basilares das decisões políticas e quando nenhum deles detém circunstancialmente maioria suficiente para fazer valer a sua são os pequenos partidos que determinam o resultado assumindo um papel de fiel da balança, na votação dos projectos de despenalização da eutanásia foram o PS e o PSD que, por terem votos divididos, assumiram o papel de fiéis da balança, sendo que, se votassem em bloco de acordo com as suas posições maioritárias tradicionais, o PS a favor e o PSD contra, os projectos seriam rejeitados.
No PS, onde no tempo da liderança Sócrates se percebeu que o crescimento fulgurante do BE de eleição para eleição se devia, não a um incremento da receptividade do eleitorado às propostas trotskistas, comunistas, estalinistas e maoistas, mas a ser o único partido que assumia claramente a defesa de causas fracturantes que os grandes partidos se esquivavam a assumir por considerarem um risco eleitoral que lhes podia fazer perder os votos dos seus eleitores habituais se as considerassem indesejáveis, e se esvaziou esse crescimento passando a assumir a defesa dessas causas e com isso conquistanto os votos dos eleitores que só votavam no BE porque as defendia isolado, as causas fracturantes passaram a fazer parte da imagem marca do partido. E o PS reforçou nas legislaturas mais recentes os seus quadros e os seus parlamentares com militantes e deputados que se distinguem apenas pela defesa destas causas e por mais nenhumas, ou, quando vão à discussão em temas políticos ou económicos, tendem a defender posições que não se distinguem em nada das defendidas pelo BE, desde renegar a dívida a depositar grandes esperanças no bolivarismo venezuelano a ver na Angela Merkel uma reencarnação da maldade do III Reich. Até a investir na telegenia.
Com figuras de proa na luta pelas causas fracturantes, a experiência de sucesso a capturar eleitorados bloquistas sem afugentar o seu eleitorado tradicional, e, porque não reconhecê-lo? o recurso aos marketing científico das sondagens e dos focus groups, o PS apresentou naturalmente a sua proposta, que antes do debate foi defendida publicamente pelo primeiro-ministro e pelos mais altos dirigentes do partido. E geriu com alguma destreza, a destreza por que se tem aliás distinguido o primeiro-ministro na gestão de equilíbrios entre interesses divergentes, as vozes discordantes. Se havia uma série de deputados que não concordavam com a despenalização da eutanásia, apenas dois assumiram o voto contra, tendo a generalidade dos restantes votado favoravelmente o projecto do PS e abstendo-se ou votando contra os outros projectos. Os outros deputados do PS votaram favoravelmente os quatro projectos.
Com o PSD foi diferente. O PSD defende tradicionalmente posições sociais conservadoras e tolera tradicionalmente posições individuais divergentes, concedendo habitualmente aos deputados liberdade de voto quando são votadas causas fracturantes. E assim foi na votação dos projectos da despenalização da eutanásia. Só que, ao contrário do que aconteceu no PS, o presidente do PSD defendeu previamente, e de modo um tanto ou quanto histriónico, a posição oposta à mais comum no partido e respectivo eleitorado, a despenalização da eutanásia, primeiro declarando que é um imperativo do Estado despenalizar a eutanásia, posteriormente lamentando hipotéticas pressões dos detractores da despenalização sobre os seus defensores. Já figuras de referência para os eleitores e militantes do PSD, ou para ser mais assertivo, as duas maiores figuras de referência actuais que são Aníbal Cavaco Silva, que é conservador, e Pedro Passos Coelho, que não é, manifestaram publicamente a sua oposição aos projectos. À destreza que tem distinguido o primeiro-ministro a gerir equilíbrios entre interesses divergentes, o presidente do PSD tem contraposto a mais completa inépcia a fazê-lo. É a vida.
E os deputados do PSD votaram esmagadoramente contra os quatro projectos, tendo apenas dois votado todos favoravelmente, mais dois o do PS, e um cada os do BE, do PEV e do PAN, assim como dois que se abstiveram em todos. Divergiram do chefe para se alinharem com as figuras de referência do eleitorado e dos militantes do partido.
O fiel da balança foi, pois, constituído pelos dissidentes dos dois maiores grupos parlamentares e determinou a rejeição dos quatro projectos.
Resta o BE. O grupo parlamentar do BE comportou-se no parlamento como o adolescente que está cheio de razão, ou pelo menos cheio de si próprio, e quer convencer das virtudes do comunismo, porque acaba com ricos e pobres, os pais, que sabem que o comunismo acaba mas é com os ricos e com os pobres, bombardeou os grupos parlamentares do PSD e do CDS com afirmações de superioridade moral a roçar a injúria da insinuação de desumanidade, chegou a esgrimir argumentos liberais, quiçá neoliberais? ao lamentar os excessos do Estado ao dispor da vida dos cidadãos, zurziu no PCP citando-lhe Saramago (vá lá, pelo menos variou um bocado das tradicionais citações do Sérgio Godinho pelo primeiro-ministro) e atirando-lhe às trombas que estava a votar como o CDS. E no fim fez uma birra ao ameaçar que se a Assembleia da República não aprovou agora a despenalização da eutanásia a há-de aprovar seguramente. A garotice habitual de fedelhos mal-formados e mal-educados.
Balanço? Ganharam a credibilidade dos dois partidos mais conservadores, o CDS e o PCP, ganhou o povo que vota no PSD e não quer ver o partido ir atrás das modas bloquistas, e perderam os líderes dos dois maiores partidos que não têm sido capazes, talvez por receio de aparecerem politicamente incorrectos, de cortar claramente as amarras que os prendem ao projecto populista de reengenharia social do BE.
E ganhámos nós. O que nos dias que correm já não é nada mau.
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