A Rosa entrou pela porta num pranto.
- O que é que aconteceu?
- A Zurique foi atropelada.
[A Zurique não é nenhum dos gatos cá de casa, é a gata da prima dela, mais ou menos contemporânea da nossa Laranjinha, mas ela tem uma ligação muito próxima com a prima, que viveu cá em casa quando veio fazer o estágio de advocacia em Lisboa e ela ainda era bebé de fraldas, e também com a Zurique, que a prima levou para casa quando nós já tínhamos uma experiência acumulada bastante apreciável de acolhimento de gatos em casa e portanto ela apoiou com know-how e logística, e afectividade.]
- Morreu?
- Não, está viva, mas está mal.
- Como foi?
- Ontem à noite ela chegou a casa com os miúdos e a Zurique não estava em casa, tinham deixado uma janela mal fechada e ela tinha mais uma vez saído [há uns meses a Zurique tinha andada desaparecida uma semana e só foi encontrada a alguns quilómetros de casa graças a aníncios colocados nas redes sociais], e quando foram à procura dela deram com ela atropelada na rua. Ela levou-a uma clínica veterinária perto de casa, onde a observaram e lhe fizeram uma radiografia, onde viram que tem o esterno partido mas não lhe detectaram lesões internas graves, e a medicaram com analgésicos, mas a Zurique passou a noite a gemer em sofrimento. E ela hoje de manhã tem um compromisso profissional a que é impossível faltar e deixou-a em casa para ir trabalhar, e pediu-me para ir lá a casa ver como ela está e levá-la à nossa veterinária, em cuja avaliação confiamos mais.
[E, chegados aqui, a gata atropelada em sofrimento apesar de medicada para as dores, alguma incógnita sobre se é recuperável ou não, fiz a pergunta]
- E ela está preparada para ser confrontada com tomar uma decisão sobre eutanásia, se a veterinária recomendar?
[Os gatos não são pessoas.
Mas há pessoas que desenvolvem com os gatos relações afectivas suficientemente intensas para lhes ser muito penoso sabê-los a sofrer, mesmo se os gatos exteriorizam muito pouco a dor, para sentir por eles compaixão semelhante à que sentiriam por um humano próximo delas. E ninguém é obrigado a sentir compaixão por gatos, de facto ninguém é sequer obrigado a sentir compaixão por humanos, mas quem tem capacidade de a sentir, por uns e/ou por outros, também não é obrigado a solidarizar-se com a falta de compaixão de quem não a tem, ou sequer de a considerar dentro do domínio da decência humana. Resumindo, há quem sinta compaixão pelo sofrimento dos gatos.
Em todo o caso, o que me fez fazer a pergunta foi um raciocínio muitos simples. Eu gostava muito que a Zurique sobrevivesse e recuperasse das lesões e ficasse boa, mas se a veterinária avaliasse que não conseguiria resistir às lesões e comulativamente estivesse em sofrimento preferia que fosse eutanasiada e cessasse rapidamente o sofrimento a que tivesse uma agonia dolorosa, como parecia estar a ter.
Faria o mesmo raciocínio se em vez de uma gata fosse um humano, nomeadamente um humano com quem eu tivesse uma relação afectiva? Não sei, e respondo assim mais por nunca ter sido confrontado com uma decisão desta natureza do que por ter grande dúvida sobre o que decidiria se fosse.
Mas suponho que já convivi com uma decisão desta natureza, mesmo sem, por pudor, a ter tentado clarificar. A minha mãe morreu nos cuidados intensivos de um hospital depois de ter estado vários dias inconsciente e mantida viva através de ventilação mecânica e outros meios químicos de que também não me procurei inteirar em pormenor, ligada à máquina como se costuma dizer. Visitava-a diariamente, falava com ela, mais porque nos filmes se diz que as pessoas naquela situação conseguem ouvir e compreender, e a ser verdade cada palavra que lhes dizemos merecer ser dita e ser uma oportunidade que não devemos perder, do que por me parecer que de facto ela estivesse a ouvir e compreender, porque me parecia que não. E uma hora de jantar, algumas horas depois de lá ter estado, o médico telefonou-me a comunicar o falecimento, que aceitei com o conformismo de quem estava à espera da notícia sem nenhuma esperança de receber uma diferente.
Nem durante o período em que foi mantida viva artificialmente, nem quando me comunicou o falecimento, confrontei o médico com o que estava a ser feito, se era o melhor para ela, se haveria alternativas mais eficazes, se teria sido possível prolongar-lhe mais a vida. Confiei no juízo dele, não quis interferir, e respeitei-lhe as decisões. Mesmo estando convencido que a última decisão dele terá sido desligar voluntariamente a máquina por ter avaliado que já não havia nada a fazer para a trazer de volta e portanto não valia a pena continuar a prolongar-lhe uma vida que já não era bem vida, mesmo acreditando que ela não estaria a sofrer. Desligar a máquina deve ser uma decisão suficientemente pesada para um médico não necessitar de ter os familiares dos doentes a moer o juízo a quem a toma com dúvidas e recriminações. E eu não lho quis moer.
E para dizer que, resumindo, estou convencido que não foi Deus que decidiu terminar-lhe a vida naquela hora mas o médico num processo de decisão grave mas respeitável e que eu respeitei, e que estou convencido que todos os dias muitos médicos se vêem confrontados com a decisão de desligar máquinas podendo-as manter ligadas, e que são decisões nobres, mesmo se a alternativa de manter os doentes vivos e eles virem a recuperar fosse infinitamente mais apelativa para todos. Se fosse possível.
E falei de casos em que se põe termo à vida de um doente sem o envolver na decisão por cessar a esperança de a recuperar, seja para lhe pôr fim a um sofrimento atroz, seja pela razão ainda menos premente de não ter sentido manter artificialmente uma vida sem viabilidade, nem sequer entrei por casos em que é o próprio doente a, com as expectativas que tem, decidir que não quer continuar a viver e pedir ajuda para morrer condignamente e sem sofrimento.
E não vi nenhum crime nos factos que descrevi nestas linhas, vi apenas afecto, compaixão e responsabilidade.]
- Está, se for essa a opinião da veterinária.
Enquanto ela se preparou e não preparou para sair o tempo foi avançando, quando passou pelo trabalho da prima para ir buscar as chaves de casa a prima já estava despachada do compromisso inadiável e foram as duas, e quando chegaram a casa a Zurique já descansava em paz. Sepultaram-na sem ter que tomar uma decisão sobre eutanásia.
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