Marcelo diz, ao Domingo, coisas, e com essas coisas não poucas pessoas se abastecem de opiniões para a semana. O homem é geralmente considerado um grande comunicador, do que é prova a sua larga audiência, e as coisas que diz são sempre da mesma natureza: Fulano disse ou fez isto mas as pessoas perceberam aquilo - esteve mal; ou disse ou fez aquilo, com grande habilidade, e as pessoas ficaram muito agradadas - esteve bem; o político A está a jogar bem para conquistar ou manter o Poder, e o B mal porque as pessoas ou não o perceberam, porque se explicou mal, ou perceberam-no perfeitamente mas não querem aquilo, razão pela qual B não deveria ter dito o que disse. Penetrados de admiração, os chefes de família abanam aprovadoramente a cabeça e dizem, com a boca cheia da sobremesa que ainda não acabaram de mastigar: o Professor sabe muito disto!
Não sei, porque deixei de o ouvir há anos, se ainda recomenda livros no fim do programa. Mas costumava recomendar todos os publicados, com excepção da lista telefónica, deles dando nota da mesma forma que aos acontecimentos, tendências e opiniões: pela badana.
Nunca ninguém lhe ouviu uma opinião desalinhada ou uma dúvida profunda sobre as escolhas que o País fez nos últimos 40 anos: a aprovação da Constituição, a adesão à CEE, a evolução para a UE e o Euro, os poderes relativos dos actores do Estado, as leis eleitorais, os referendos - Marcelo espera que na área a que pertence, que é a do arco da social-democracia, isto é, o outro nome do tachismo bem-pensante, se desenhe um consenso, e lá fica ele, com engenho, a consensualizar.
Parece que no Parlamento há deputados que se dedicam a ver imagens de gajas no Facebook, vídeos publicitários, e outras actividades menos recomendáveis, como falarem uns com os outros, por telefone, enquanto decorrem os debates. E isto escandalizou uma moça de 16 anos, cuja mãezinha escreveu ao ilustre professor, e ao Governo, indignada com este magno escândalo.
“Vai ser o fim do mundo”, declarou com severidade o oráculo da opinião, que acrescentou: "Atenção caríssimos deputados, depois digam que estão a contribuir para a democracia portuguesa".
Em atenção à jovem vilafranquense, à mamã preocupada, à distinta comunidade dos chóferes de taxi, e aos admiradores de Marcelo, devo informar que um Parlamento não é uma empresa, nem seria desejável que o fosse, ainda que possível: uma empresa está organizada hierarquicamente segundo um organograma para produzir um bem ou serviço, o Parlamento reúne um certo número de cidadãos depositários de uma escolha livre para realizar o bem comum consoante a visão que desse bem tem cada um dos partidos. Os parlamentares não são funcionários sob a direcção do Presidente (este é apenas um primus inter pares), são representantes do Povo que os elegeu. Isto significa que se os deputados de um certo grupo traírem o mandato que lhes foi confiado, e que não consiste em produzir leis a metro, cabe aos eleitores penalizá-los, se assim o entenderem. Por mim, não exijo aos deputados que elegi que estejam sempre no Plenário ou comissões a fingir que se interessam por assuntos para os quais não têm preparação nem interesse; antes pretendo que nas áreas que lhes estejam alocadas contribuam para a feitura de leis razoáveis. Por outro lado, não vejo por que razão os deputados haveriam de estar sempre segregados no casão deles como num degredo, nem com que direito jornalistas ou visitantes lhes espiolham os computadores e os telemóveis.
Um conjunto de regras idiotas contidas, suponho, no instrumento a que chamam Regimento, obriga a que os deputados (que o aprovaram por estarem tolhidos de medo da opinião pública, uns, nem saberem o que lhes falta, outros, e serem comunistas, portanto funcionários por definição, os restantes) se deixem tratar como operários numa linha de montagem. E, é claro, isto leva a que cada jornalista, ou já agora, visitante, se ache no direito de agir como o pequeno patrão que vigia as idas à casinha dos empregados.
Marcelo não acha nada disto, e está decerto bem acompanhado. Mas é triste que quem ajuda a fazer a opinião não sirva para mais do que dar caução a preconceitos, invejas disfarçadas de superioridade moral, e ideias de funcionário sobre o que um Parlamento deve ser.
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