Nunca fui aluno da escola do elogio mútuo, organização que tem em Portugal múltiplos estabelecimentos, tradições arreigadas, sócios prestigiados e estatuto inamovível.
No tempo do governo da troica isto era um problema: a reforma do Estado (isto é, extinção de serviços, despedimentos de pessoal, revogação de legislação atropelando a liberdade económica e a dos indivíduos, em suma, a diminuição da presença na vida das empresas e das pessoas), bem como a baixa dos impostos, nunca se materializaram. Ao contrário: o governo, injustamente tachado “de direita”, não tocou seriamente no Estado, nem sempre curou, com as privatizações, de assegurar a concorrência e não apenas a transferência de monopólios, nem muito menos se subtraiu ao vento das modas estúpidas do fascismo sanitário e do combate à desigualdade e à evasão fiscal.
Problema para mim porque não era razoável que um sócio, anónimo embora na sua quota de 1/10.000.000, acabrunhasse de críticas o administrador da massa falida quando este se esforçava seriamente, e no essencial com mérito, por tirar a empresa do atoleiro, e isto quando havia accionistas inimputáveis que desejavam a falência, uns, e se imaginavam mais competentes, outros, todos aguerridos na sua inconsciência.
Havia porém dois elementos do governo que, personificando parte do que nele estava errado, e sendo ao mesmo tempo política e pessoalmente insignificantes, davam um flanco jeitoso a quem, como eu, não queria ser confundido com a turba acéfala dos anti-austeritários mas não via com bons olhos personagens que se dizem de direita mas não defendem, por ignorância ou má-fé, senão soluções de esquerda.
Um deles era o secretário de Estado da inquisição fiscal, Núncio; e o outro o seu colega para assuntos da burocracia da saúde pública, Leal da Costa.
O primeiro tem estado calado, razão pela qual não pode ser acusado de acrescentar ao ar espesso do asneirol; mas o outro não cessa de se aliviar das suas opiniões, de mais a mais no Observador. Este jornal, originariamente pensado como pretendendo dar voz a correntes de direita, tem vindo a ceder espaço a socialistas como Aguiar-Conraria e Trigo Pereira, por darem ambos a impressão de não ser completamente geringôncicos; e a bem, supõe-se, do Centrão e da modernidade pateta, acolhe também este Savonarola da saúde.
Que diz então Leal? Goza com o Despacho 11391/2017 de 19 de dezembro, não porque este seja, como é, uma intolerável intromissão do Estado nos hábitos de consumo dos frequentadores dos hospitais e na liberdade dos concessionários das cafetarias mas porque na grotesca lista que consigna faltam o toucinho do céu, o pudim abade de priscos, o salame de chocolate e – aqui Leal todo se escancara num riso alvar - o salpicão.
“É com palermices como a deste Despacho, que fará história, que se matam boas ideias para a melhoria da saúde pública”, diz com suficiência.
Sucede que, salvo no que toca à preocupação pueril do Despacho de descer à minúcia de fazer o elenco de todos os artigos de cafetaria que o legislador acha que devem ser vedados a quem entre num hospital público, não há qualquer diferença essencial entre o abuso do fascista Fernando Araújo e os do seu antecessor Leal.
Diz este último: “Por muito menos, numa outra vida que já tive, chamaram-me de higieno-fascista por defender medidas, eficazes e de impacto provado, no combate ao tabagismo”.
Foi, Nandinho? Chamaram-te isso, credo? Olha, fui um deles e aliás ainda te chamei coisa pior.
O tabagismo faz mal à saúde. Mas a doçaria também, e boa parte do que consta da famigerada lista. Se, com o dedinho em riste do frade justo, não hesitaste em atropelar os direitos dos viciados em tabaco, entrando por estabelecimentos privados dentro e indo muito além do pretexto inicial de defender a saúde dos não-fumadores, por que razão é que o teu colega, que faz parte de um governo que poderias perfeitamente integrar se não calhasse teres filiação noutro clube, não pode entrar em estabelecimentos públicos?
“Conheces e aprecias” Fernando Araújo. Compreendo: ser farinha do mesmo saco é em si uma base sólida para o respeito mútuo.
Saco que, a bem da liberdade daquela minoria que não reconhece ao Estado o direito de lhe dizer o que pode ou não comer, e que vícios são toleráveis, bem podia ser atirado ao mar.
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