A boleia que o primeiro-ministro António Costa apanhou das manifestações feministas do dia da Mulher pondo a render a militância feminista da mãe no seu roteiro meticuloso para pescar votos em todos os segmentos do eleitorado, desta vez lançando as redes ao eleitorado sensível aos direitos das mulheres, como recentemente as tinha lançado ao eleitorado sensível às questões raciais numa pergunta boçal à deputada Assunção Cristas, fez-me recordar a minha mãe.
A minha mãe nunca foi feminista, nem nada que se aproximasse.
Mas logo que acabou o liceu começou a trabalhar nos CTT onde ficou até se reformar, integrou concursos para cargos de chefia dos CTT onde pela primeira vez participaram mulheres, não complementou o apelido de nascença Vilarinho com o apelido Pires do meu pai, e cada um tinha a sua conta na Caixa Geral dos Depósitos.
Em casa tinhamos criada, pelo que na distribuição das tarefas domésticas não havia uma distinção assim tão evidente entre o papel da mulher e o papel do marido, a não ser na culinária, onde ela se dedicava a coisas mais de fundo, nomedamente na doçaria, e ele se limitava a petiscos ao sábado de manhã, que fazia com alguma arte, e ao arroz minhoto magistral, que tinha aprendido com a minha avó. E nenhum deles mandava claramente mais do que o outro.
As únicas coisas que talvez a pudessem associar aos estereótipos do binário de género heteropatriarcal eram nunca ter fumado, nunca ter usado calças, e nunca tirado a carta de condução por achar que conduzir lhe fazia nervos. E, vá lá, tricotar e fazer crochet.
Como eu não atribuía a nenhuma destas coisas uma conotação de submissão, e como a minha mãe toda a vida praticou sem pregar a igualdade de género, não tive a oportunidade de crescer num mundo heteropatriarcal sufocante nem de me formar nos valores da insubordinação contra as indignidades que impõe, principalmente às mulheres, por mais que alguns filósofos da moda insinuem que não, pelo contrário. Perda a minha.
E ao lembrar-me dela lembrei-me também de uma feminista encartada portuguesa, pioneira há décadas de causas igualitárias como a despenalização do aborto, e que pelo pioneirismo quase se pode reclamar titular do franchise em Portugal de Maio de 68 e do feminismo.
E lembrei-me porquê? Por semelhança com a prática da minha mãe? Não, por contraste com ela.
Como disse acima, a minha mãe manteve por toda a vida o apelido de solteira, nenhuma das duas mulheres com quem casei alterou o apelido por se ter casado comigo, e eu não tenho nada contra as pessoas que adoptam o apelido do cônjuge, nem contra o desequilíbrio estatístico abissal entre o número de mulheres e de homens que o fazem, que faz com que seja mais realista sem perder em rigor estatístico falar de mulheres que adoptam o apelido do marido do que de pessoas que adoptam o apelido do cônjuge. Apenas não foi assim que eu cresci e vivi. E, mesmo sem ter nada a criticar, não deixo de considerar, mesmo correndo o risco de cair na alçada dos vigilantes da ideologia do género, que também os há a par dos vigilantes da homofobia ou da misoginia, a adopção do apelido do marido um indício de uma submissão das mulheres aos homens em que não fui educado.
Já a tal feminista mítica casou três vezes e ficou para sempre com o apelido do segundo marido. Não o do primeiro, não o do terceiro, mas o do segundo. Não sei porquê, nem me interessa, nem tenho nada a ver com o assunto, nem tenho, como expliquei acima, nada a censurar ou sequer a criticar.
Mas não consigo deixar de pensar que, se a minha mãe praticou sem pregar a igualdade de género, há feministas que a pregam sem praticar.
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