Ontem uma actriz queixava-se amargamente na SicN de que os actores também precisam de comer, pagar a renda da casa, fazer compras e educar os netos (tinha idade para os ter, e não lhe foi perguntado se essa seria uma obrigação típica dos avós). A senhora falava com o coração nas mãos e inquiria, dramática: se toda a gente tinha um ordenado, se até os empregados dos bancos os tinham, não obstante nós todos passarmos a vida a lá pôr dinheiro, por que razão é que os actores haviam de ficar numa situação desesperada?
Sobre os bancos não vou responder à senhora com detalhe, salvo para dizer que o preço de não os apoiar é ainda maior do que apoiá-los.
Mas mesmo que haja, e há, boas razões para supor que a gestão desastrada dos bancos não foi, e continua a não ser, adequadamente penalizada; que uma parte (menor) da destruição do seu valor resultou não apenas do rebentar de uma bolha especulativa mas também de negócios de contornos ilícitos ou inacreditavelmente ineptos, que não são denunciados por envolverem um número demasiado grande de indivíduos que pertencem ao grupo da dança das cadeiras dos gestores públicos, académicos da economia e finanças, e políticos e advogados do Centrão: não se segue que todo o cão e gato tenha o direito de viver à custa do Estado sob pretexto de que custa, comparativamente, pouco.
E foi isso que a senhora disse: eu tenho o direito que o Estado me sustente já que sustenta outros com muito menos merecimento.
Menos merecimento porquê? Porque a senhora, e a caterva dos seus colegas, são agentes da cultura, que é por definição algo de superior. E, como diz este senhor, numa afirmação lapidar que Marcelo, e todos os outros papagueadores de banalidades, decerto subscreve, “não colhe o argumento da subsidiodependência pois só um Estado inculto não investe em cultura”.
Se corrermos os jornais por estes dias tropeçamos com um ror de queixas e reclamações, por exemplo aqui e aqui. E indo o clamor em crescendo, e sendo o governo do dia o que é, esta berrata já está a dar resultado, pelo que se alargarão os cordões à bolsa do contribuinte até ao ponto em que, se houver uma companhia de teatro que queira levar à cena Ionesco em Freamunde, para ilustração dos operários da indústria de mobiliário, o Estado investe e os beneméritos actores forrarão as barrigas famélicas com um bom jantarinho de capão, que por aqueles lados se assa de forma superlativa.
É claro que o Estado não se deve demitir da cultura. Mas esta, sendo muitas coisas, não é certamente a prodigiosa colecção de piolhosos que gritam em nome dela, e em nome dela se espolinham num palco em peças que ninguém entende e, por ninguém entender, ninguém quer ver; ou a compor peças musicais exotéricas para disfarçar a incapacidade de interpretar os clássicos; ou a preservar teatrinhos de marionetes e promover exposições de lixo sob a designação genérica de arte contemporânea, das quais a melhor parte seria o catálogo, se por milagre estivesse redigido em bom português.
Isto poderia ser talvez assim se o país pudesse alocar a estas festividades mais do que os 0,4% do PIB que lhes dedica; e poderia ser sobretudo se não houvesse monumentos em ruínas, bibliotecas onde chove, escolas essenciais, como o Conservatório, num caco, ou investigação séria que não tem patrocínio; mas houvesse educação que formasse para criar uma massa crítica de cidadãos que garantisse os mínimos de mercado para a existência de formas superiores de cultura, em vez de analfabetos, ignorantes contumazes, duros de ouvido, vesgos e socialistas sortidos, com perdão da amálgama.
Desta vez, à boleia do clima económico de euforia, em boa parte artificial, que a propaganda tem criado, não vai fechar nenhuma das prestigiadas associações que a população dispensa, muito menos as companhias de bandeira a que Santana Lopes, numa engenhosa comparação, se referia há dias na televisão, e que não foram contempladas com subsídios; nem aquela malta do Norte, capitaneada pelo presidente da câmara do Porto, deixará de ser servida; assim como Évora, uma cidade comunista, deixará de ver revisto o descaso a que foi votado o teatro local – Jerónimo de Sousa, com ar soturno, já rosnou umas coisas ameaçadoras sobre a distribuição do bolo.
A grande ambição de toda esta gente é regressar aos níveis de 2009. Ignoro o que se terá passado naquele ano que permita afirmar que a cultura se distinguiu, pelo seu brilho, da sucata que estava antes e do esterco que veio depois.
Mas eu, se tivesse a ambição de viver à custa do contribuinte para o efeito de o ilustrar com a minha superioridade mal agradecida, escolhia talvez outra época para comparação: uma em que não estivéssemos às portas da bancarrota.
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