Todos os genuínos democratas sentiram, com a vitória de Trump, uma grande satisfação, que não teriam se tivesse sido eleita Hillary Clinton.
Os eleitores foram expostos a uma campanha suja, de um lado e outro, desbragada, feita de ataques pessoais, repescando histórias antigas de deslizes de linguagem e de comportamento do candidato, incluindo testemunhos genuínos ou fabricados de mulheres ofendidas na sua dignidade, a que têm e a que dizem ter, pela sua personalidade machista, e outras não tão antigas, e substancialmente mais graves, do comportamento de Hillary como secretária de Estado. Donald não hesitou em momento algum em mostrar-se como é, no seu penteado absurdo, no seu mau gosto exuberante, na sua linguagem chã, mas também na sua proximidade às preocupações, aos medos e aos conceitos e preconceitos das pessoas comuns, as que não estão no círculo de poder de Washington, dos think-tanks, da opinião publicada, das redes de TVs, dos campus das universidades e das ideias dominantes do bem-pensismo que anda no ar.
Esta gente toda levou uma lição: a autenticidade, quando se casa com as genuínas preocupações das pessoas, paga; e a língua de pau, a pose, e o circuito fechado das elites dirigentes e preopinantes, não. O voto do espectador da Casa dos Segredos e o do trabalhador com medo da criminalidade e da concorrência do imigrante que aceita trabalhar por menos dinheiro, ou o do secretamente xenófobo sem saber o que isso seja, até mesmo o do cidadão que tem que suportar a sua vizinhança negra ou hispânica porque não tem meios para se transplantar para uma zona mais segura; o de muitos dos que acham que há qualquer coisa de errado numa sociedade onde se salvaram bancos mas com raros suicídios ou desgraça dos muito ricos que continuaram a enriquecer à sombra de políticos com um discurso igualitarista, enquanto milhares foram viver para trailers porque perderam as suas casas - todos esses votos valem tanto como o do plutocrata, do progressista das causas fracturantes, do jornalista que se imagina opinion-maker, e do liberal teórico que se felicita pelos milhões de chineses que saíram da pobreza por causa da liberdade de comércio. E esta mole insegura do seu futuro, e do do seu país, estava à espera de alguém que lhe prometesse credivelmente uma América great again, depois de um Obama que sempre fez discursos tanto mais empolgantes quanto mais aquém ficava das suas promessas de mudança.
Hillary papagueou sempre o mantra do político vulgar contemporâneo na América e, onde haja circunstâncias parecidas, no resto do Ocidente, e que consiste na defesa: dos pobres através de agências governamentais encarregadas de lhes promover o bem-estar, a saúde e a dependência; do ambiente através da multiplicação de normas, regulamentos e interditos que favorecem as grandes empresas, e da subsidiação da comunidade científica que vai segregando teorias alarmistas para cujo desarme propõe soluções que lhes garantem a eles, cientistas, proeminência e empregos; da igualdade material entre as pessoas, a golpe de aumentos de impostos, entre os sexos, a golpe da generalização do sistema de quotas, e entre as raças, fingindo que não há um problema com os negros das partes de cidades onde a criminalidade reina; e também da igualdade entre os naturais, antigos imigrantes há duas ou três ou quatro gerações, e os imigrantes actuais, dos quais muitos já não querem integrar-se, querem é mudar a natureza, e as instituições, do país que os acolhe, assim como da equivalência entre as religiões, metendo no mesmo saco de respeitabilidade as numerosas igrejas e capelas do cristianismo, sobretudo nas variantes protestantes, e o islamismo, cuja ameaça ao modo de vida ocidental não se quer ver. Tudo isto com o pano de fundo das mais que justificadas suspeitas do conúbio e da promiscuidade com os muito ricos, quando não de pura e simples corrupção. Na campanha, Trump foi dando uma solução, mesmo que pouco e grosseiramente articulada, a estes problemas, Hillary oferecendo, de forma estudada e bem formulada, as mesmas não-soluções que distinguem os políticos tradicionais, lá e em certa Europa, e que os fazem e farão perder eleições.
O que está feito, feito está, e certamente o que não faltam já são análises sobre o que se passou, que cabem quase todas nas categorias dos que, por terem ficado chocados com a vitória e terem o coração à esquerda, preveem agora o Armagedão, ou dos que entendem que o sistema de contrapesos, e o desejo de pacificação, transformarão Donald num presidente as usual. Estes últimos dirão que deixará uma marca tanto de ridícula como a de Obama foi inspiradora, com a mesma ineficácia na transformação da sociedade americana, que segue o ritmo que ditam os ciclos económicos, na ordem interna, e as imprevisíveis evoluções do velho jogo dos interesses permanentes, na externa. Ou seja, um era preto, magro e de esquerda, e deixa saudades porque iria fazer grandes coisas em nome da felicidade terrena que o establishment não permitiu; e o outro é cor de laranja, gordo e de direita, e não deixará saudades porque, felizmente, não realizará os seus maléficos propósitos porque o establishment o vai impedir.
O que ele prometeu para os primeiros 100 dias está aqui. Esta lista de medidas não pode ser executada em 100 dias (nem sequer nos quatro anos do mandato), e pelo que me diz respeito o que se prevê para o sistema penal, a bravata de pôr o México a pagar o muro, a deportação de dois milhões (!) de ilegais, e a ingenuidade de imaginar que, tão adiantados que estamos na globalização, se podem rasgar tratados e acordos com facilidade e sem consequências, são coisas que, entre outras menores, me deixariam os cabelos em pé, se os tivesse.
Mas creio que este programa, mesmo que fique, como ficam todos, muito aquém do que promete, vai geralmente na direcção correcta, para uma nação que se defronta com os problemas que a América tem. E é decerto um alívio não descortinar nenhum lip service às causas fracturantes, às preocupações com o aquecimento global, ao igualitarismo à outrance e todas as outras manias com que se entretém a malta das bandeiras desfraldadas ao vento das manifestações.
Vai ser, então, um bom mandato? Acho que sim. E, se não for, também não perco o sono: se todos os que detêm magistraturas de influência, e cátedras de opinião, se enganaram no diagnóstico dos problemas, e portanto não anteciparam o resultado das eleições, tenho o acrescido direito, porque não tenho nada disso, de me enganar, e talvez até me fique bem - serei como os mais.
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