Nos regimes comunistas não há greves. No sector privado não porque não há sector privado; e no público também não porque estando o povo trabalhador no poder o trabalhador propriamente dito não pode fazer greve contra si mesmo. Impecável lógica. Daí que, quando há tentativas de greves os inspiradores e aderentes acabem invariavelmente num qualquer gulag. Se não for assim o regime acaba, como acabou na Polónia de Jaruzelski quando o Pacto de Varsóvia já abria fendas por todos os lados e o Solidariedade andava por lá a arreganhar os dentes.
O povo em Portugal está no poder mas poucochinho, através do PCP e do BE, e portanto ainda há a possibilidade de greves. Na realidade, como reconhece candidamente este antigo fanático comunista, e actual fanático socialista e europeísta, referindo-se à greve cirúrgica dos enfermeiros:
“(i) no caso dos serviços públicos, os trabalhadores não correm o risco de as suas greves porem em causa a sua existência e os seus próprios postos de trabalho, como sucede nas empresas privadas, sabendo que o Estado não pode encerrar os serviços públicos e despedir o pessoal; (ii) como as greves nos serviços públicos afetam maciçamente os respetivos utentes, em especial os de menores rendimentos, os governos veem-se muitas vezes forçados a ceder às reivindicações, mesmo que elas sejam despropositadas e orçamentalmente ruinosas”.
Tem razão. Sucede porém que quem ouvir os enfermeiros não acha as reivindicações despropositadas. E mesmo que não se compre o argumento da bastonária de que o governo não cede aos enfermeiros mas cede aos bancos (um assunto que dá pano para mangas mas do qual não me vou ocupar aqui) resta que os enfermeiros apenas usam contra o governo a sua própria retórica do virar a página da austeridade. A austeridade não acabou, como se sabe, apenas foi substituída pela loucura da redução de cinco horas do horário semanal, umas reversões aqui e ali, um aumento de taxas e de receitas induzidas pela diminuição do desemprego e pelo pálido crescimento económico, e uma intensa barragem de propaganda enquanto o nosso Ronaldo das Finanças se assegurava com mão férrea de que os orçamentos aprovados pela maioria geringonceira eram desrespeitados a benefício da redução do défice – o diagnóstico anda aí pela pena dos economistas sérios, uma raridade na Academia e nos jornais.
Então, que propõe o preclaro jurista coimbrão? A reversão do horário das 35 horas para as 40, em nome da igualdade entre o sector público e o privado, e que se lixem os sindicatos e a bastonária? A cedência, mesmo que negociada, e que se lixe o défice? A mesma cedência mas compensada com cortes na despesa pública, a indicar?
Não. A criação de um regime diferente para os sindicatos da função pública. E Vital não pega na coisa, como dizem os franceses, com as costas da colher:
“Sem pôr em causa substantivamente o direito à greve, há margem, por exemplo, para maior antecedência do pré-aviso, limites à duração das greves, interdição de greves parciais (como a greve às cirurgias), comunicação individual prévia dos trabalhadores que vão fazer greve (para permitir aos serviços adaptarem-se às greves). Além disso, pertencendo o direito à greve diretamente aos trabalhadores e não aos sindicatos, é de equacionar a hipótese de a declaração de greve sindical só abranger os seus próprios associados, tornando necessário um referendo em cada estabelecimento público para habilitar os demais trabalhadores a fazer greve”.
Eh lá, gosto disto. E eu acrescentava a obrigatoriedade de o referendo ser em escrutínio secreto, mas mesmo sem isso já arremato. Somente, ao contrário de Vital, não quero os trabalhadores públicos com menos direitos, no âmbito do uso da bomba de neutrões que a greve é, do que os do sector privado, razão pela qual estas alterações, a fazerem-se, deveriam ser para todos os trabalhadores.
Mas é claro que para todos os trabalhadores não pode ser porque valha-me Deus, as conquistas de Abril, a Constituição e não sei quê. Nem para os públicos, aliás, até agora: nenhum socialista se lembraria de uma tal revolução se a greve dos enfermeiros não tivesse vindo pôr a nu que, como ainda não temos um regime comunista, das duas uma: ou se limitam severamente as greves no sector público ou se privilegiam as PPPs da Saúde, e se generaliza a ADSE, de forma a que uma greve não possa paralisar uma parte esmagadora da prestação de cuidados de saúde por estes não serem prestados, como deviam, pelo sector privado em múltiplos estabelecimentos.
Não fui eu quem concebeu o SNS, nem sou eu quem o defende com a configuração que tem. Mas é uma saborosa ironia que um socialista de impecáveis credenciais venha defender o que sempre defenderam os comunistas: no público greves não; no privado sim, desde que não exista.
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