Anteontem aprestei-me, como há muitos anos, para ver a Quadratura do Círculo, coisa que venho fazendo ultimamente com crescente desgosto.
A perenidade, e o sucesso, do programa, junto daquela minoria de pessoas que se interessam por questões políticas, sociais e económicas, resultavam de uma receita simples mas eficaz: juntar três tipos com algum cachet, um próximo do PSD, outro do PS e outro do CDS, e pô-los a falar sobre os casos da semana. A exclusão de gente à esquerda do PS garantia que haveria um terreno comum de valores com cuja discussão não se perderia nem tempo nem espectadores (os comunistas e afiliados não convertem senão convertidos, e o seu debate com democratas é sempre envenenado pela contradição insanável entre o que dizem defender, na sua língua tradicionalmente de pau, e o que realmente defendem); a limitação a três participantes diminuiria a possibilidade de balbúrdia dando ao mesmo tempo algum tempo a cada um para expor o seu ponto; e a rejeição do simples debate a dois aumentava o interesse do programa porque o leque de escolhas entre posições de direita e esquerda nunca fica adequadamente representado apenas por duas posições.
A fórmula original, a do programa radiofónico que lhe deu origem, havia sido imaginada por Vasco Pulido Valente, que aliás nele participou durante algum tempo, sem que todavia o tenha crismado de Flashback, e a paternidade da ideia foi-lhe subtraída nos benefícios e na história - pecados velhos de uma cidade, e um meio, pequeno e pulha. As coisas vieram a cristalizar, para o que aqui me interessa, a partir de Janeiro de 2004, quando José Pacheco Pereira, José Magalhães, António Lobo Xavier (que havia substituído Nogueira de Brito), com Carlos Andrade na moderação, iniciaram a emissão na SIC Notícias com o nome de "Quadratura do Círculo" - é desse tempo que data a minha fidelidade.
Quem tivesse simpatias partidárias do tipo clubista inclinava-se a achar que o seu campeão tendia a amassar os outros dois; quem as tivesse de forma mais reflectida deixava ocasionalmente que um ou outro dos adversários lhe parecesse mais convincente; e a quem fosse impenitentemente viciado em pensar pela própria cabeça podia acontecer, de quando em quando, concluir que os três cavalheiros mijavam, em simultâneo, fora do penico, com perdão da imagem.
José Magalhães, um aldrabão de discurso torrencial, foi substituído por Jorge Coelho, em 2005, e o que se perdeu em exercícios de retórica ganhou-se em manha - o PS não saiu prejudicado, e terá sido mesmo beneficiado junto das bases, da terceira idade e dos empregados do comércio; em 2008 Jorge Coelho foi tratar da vidinha e em seu lugar veio António Costa, que trocou com o mesmo Coelho em 2014. Neste ano, com efeito, Costa conseguiu remover do secretariado-geral do PS o bom do Seguro, que lhe tinha estado a guardar o lugar nos anos em que Costa se dedicou a fazer esquecer a sua condição de comparsa de Sócrates, a montar o cenário da sua gestão supostamente competente da Câmara Municipal de Lisboa, e a fazer oposição ao governo PàF. Realmente, ser ao mesmo tempo Secretário-Geral do PS e comentador da Quadratura seria um pouco demais, já tendo sido difícil de engolir, para muitos espectadores, a acumulação com as funções de Presidente da Câmara.
O sucesso não decorreu apenas, é claro, da fórmula, mas também da personalidade dos participantes. Dos três que lá estão agora uns espectadores respeitam Pacheco, porque leu evidentemente mais livros do que o leitor médio; outros Coelho, que não leu mas tem mais ronha no dedo mindinho que os outros no corpo todo; e os restantes Xavier porque se diz de direita, parece entender de fiscalidade e banca, de burro não tem nada e se comporta de forma inexcedivelmente cordata e educada. Os três têm à-vontade, experiência e jogo de rins para compor o programa.
As pessoas são estas, e serviriam, mas a fórmula do programa está prejudicada, e já o está desde que Passos Coelho ascendeu ao topo do PSD.
Isto carece de explicação, que intento: Pacheco Pereira é um intelectual atípico, no sentido em que não simpatiza ou antipatiza com os actores da actualidade política porque estes estão mais perto ou mais longe da opinião que tenha sobre o que é melhor para a comunidade, como fazem os intelectuais vulgares. Não, Pacheco funciona ao contrário: simpatiza com Beltrano e Sicrano por razões que não entendo, e o próprio talvez também não, e deduz teorias políticas esdrúxulas que justificam a simpatia. Isso explica que tivesse sido um defensor feroz de Cavaco quando este era novo e foi governante, mas seu inimigo quando presidente, tendo Cavaco sido igualmente medíocre, e igualmente constante nas suas posições políticas, nessas duas encarnações; que tivesse apoiado a invasão do Iraque mas hoje esteja próximo dos Democratas e abomine Republicanos; que fosse um inimigo empenhado de Sócrates, de quem Costa foi número dois, e hoje um feroz defensor de Costa, que não difere de Sócrates em nada de essencial; e que simpatize com, por exemplo, Manuela Ferreira Leite, uma nulidade política, e com Rio, um indeciso notório muito diferente daquela senhora, mas odeie visceralmente Passos Coelho, a quem não assiste nem a mediocridade de uma nem a falta de determinação do outro.
Pacheco é assim: se os anos da troica tivessem sido conduzidos por Ferreira Leite não teriam sido substancialmente diferentes as políticas, mas Pacheco tê-las-ia recoberto com o manto da autoridade que a sua biblioteca na Marmeleira lhe confere. Como porém foi por Passos, Pacheco deslizou para a esquerda, a ponto de, antes de se tomar de amores por Costa, o Bloco, que deveria estar afastado do convívio das pessoas de representação, estar fugazmente representado na Quadratura via Pacheco.
Ora isto desequilibrou o programa - ele não foi pensado para uma preponderância de esquerda. E portanto desde 2011 que Xavier teve a missão de segurar sozinho a bandeira da direita (na versão europeísta e edulcorada que o próprio representa), o que fez com galhardia.
Costa, porém, foi lentamente criando uma relação de cumplicidade com os outros dois, com um por ter em comum a aversão a Passos, com outro por, provavelmente, ter conseguido dar a entender que seria a pessoa certa para resolver de forma satisfatória o problema da banca (é um processo de intenções que faço, devido ao meu vício antigo de, sempre que ouço políticos a falar, ter tendência a perguntar, como Fontes Pereira de Melo: mas o que é que ele quer?)
E é assim que a Quadratura, a velha Quadratura, chegou ao fim: um programa de debate entre três tendências do PS - a radical, de Pacheco, e duas de interesses (uma centrista, de Coelho, e a outra democrata-cristã, de Xavier), todas igualmente costistas.
Perdeu a novidade da juventude, já não tem a lucidez da idade madura, e não adquiriu a sabedoria da idade. Acontece. RIP.
Blogs
Adeptos da Concorrência Imperfeita
Com jornalismo assim, quem precisa de censura?
DêDêTê (Desconfia dele também...)
Momentos económicos... e não só
O MacGuffin (aka Contra a Corrente)
Os Três Dês do Acordo Ortográfico
Leituras
Ambrose Evans-Pritchard (The Telegraph)
Rodrigo Gurgel (até 4 Fev. 2015)
Jornais