Na minha cidade foi noite de vinho e barulheira. A festa, que tinha conotações classistas, sexistas e passadistas, esteve moribunda há uns anos, quando Portugal ia ser muitíssimo moderno, muitíssimo avançado e muitíssimo desenvolvido. As miúdas, porém, resolveram tomar conta, hoje tocam caixa e bombo com denodo, e apanham pielas com brio - qual sexismo qual caraças, a festa está bem e recomenda-se, tendo-se confirmado que alguma coisa havia de mudar para tudo continuar na mesma.
Pus-me ao largo há décadas - não gosto do barulho de zabumbas, de festas populares quero distância e borracheiras com dia marcado não são a minha praia, que não sou alemão. Por isso, fui mazé jantar a um sítio tranquilo, onde não havia o risco de tropeçar em nicolinos, bombos e desacatos.
Fiz mal, que o negócio dos restaurantes é dos mais exigentes, e arriscar experiências, para um reaccionário culinário impenitente, uma aventura de resultados com frequência dolorosos. A sala ampla, com alvas toalhas de algodão adamascado, baterias de copos, dois jogos de talheres, bem aquecida, impressionava favoravelmente, por contraste com o que dantes foi. O brônzeo da caixilharia de alumínio, os apliques pindéricos, as cortininhas de casa de bonecas e a lareira a fingir, num canto, auguravam o melhor, que em Portugal em sítios com decoração cuidada costuma-se comer merda e pagar caro. E tinha presente que o restaurante fora em tempos famoso pela ementa, filetes de pescada e lombinhos de vitela com ervilhas, uns e outros inalteravelmente bons, pelo vinho verde sem rótulo, excelente, e as piadas foleiras da empregadagem, ex libris do estabelecimento.
Pois a coisa não esteve bem: deixemos de lado o detalhe de haver talheres próprios para a entrada, mas não para o peixe; de o maduro da casa, alternativa em conta aos vinhos de marca da lista, caríssimos, ser uma burundanga; e de o pudim da sobremesa ser uma mixórdia à qual sobrava em farinha o que faltava em ovos, e vamos ao prato de resistência. Foi bacalhau à casa, o que queria dizer à Braga, ou à Narcisa.
Era dessa variedade branca, desmaiada e mal curada, que hoje é quase sempre como ele se apresenta, e que as novas gerações devem imaginar ser uma coisa que partilhamos com os ingleses, com a diferença de os filhos da Ilha, sem se dar ao trabalho de fingir que secaram e salgaram o peixe, o envolverem numa couraça repelente e o decorarem com batatas fritas, congeladas, a saber a bafio.
Vinha meio cru, e por isso regressou à cozinha, já não para lhe reforçar a fritura, que não deve ter sido possível, mas para lhe dar um acabamento de modo a ficar coisa nenhuma.
Fiquei a pensar para os meus botões: agora que já temos uns quantos restaurantes michelénico-estrelados, e muitos mais com cozinha de autor, que gostariam de as ter; que o turismo é, de longe, a nossa indústria de maior sucesso; que os nossos vinhos não param de ganhar prémios e subir na escala de valor, como se diz; que as casas de banho têm torneiras automáticas, que esparrinham para as camisas, e luzes que acendem por milagre, pelo efeito de atravessarmos o umbral, mas estão limpas, cortesia da ASAE - teremos que nos resignar a ver desaparecer o restaurante com defeitos tradicionais e pratos tradicionais, canonicamente feitos?
É esta pergunta angustiada que, em dia de Congresso do PS, aqui deixo. Que na verdade eu era para dizer umas coisas ácidas sobre aquela efeméride. Mas realmente não se passou nada, se é que assim se pode descrever um velório com discursos. No meu jantar sim, passou-se alguma coisa.
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