
O governo meteu-se numa grande trapalhada.
Encheu-se de brio e decidiu escolher para liderar a CGD um gestor profissional. O homem já se tinha reformado, e bem, que os gestores profissionais da banca reformam-se cedo, e bem, mas mesmo assim levava caro para voltar a trabalhar, e não estava disposto a aceitar o lugar a não ser que o isentassem de apresentar ao Tribunal Constitucional a declaração de património e rendimentos que segue directamente para as páginas do Correio da Manhã. A intenção de manter o seu património e rendimentos ao abrigo da curiosidade alheia fica mal num gestor da CGD, e é ilegal, mas é completamente ética e legítima em qualquer outro cidadão, assim como a decisão de declinar o convite se não fosse satisfeita. Mas o governo, levado pelo brio, e inebriado pela missão de fazer Portugal porreiro de novo e livre da austeridade, decidiu fazer-lhe a vontade com um arranjinho legal para o isentar dessa exposição. Melhor ainda, delegou nos advogados do banqueiro a melhor redacção para a lei que publicou com essa finalidade. Quando a coisa foi tornada pública, ainda ensaiou um argumentário na linha de é preciso ir buscar os melhores e aliciá-los com condições concorrenciais com o mercado, mas acabou por perceber que com a medida corria mais risco de se tornar impopular do que estava disposto a correr, e abandonou o banqueiro e a sua intenção de manter o património e os rendimentos em privado à sua sorte. Começou a negar que tivesse tido intenção de isentar o banqueiro da declaração e passou mesmo a dizer publicamente que era claro que o banqueiro teria que os declarar. O banqueiro acabou por se demitir pouco depois de entrar em funções, causando um embaraço ao governo, não por ter enganado o país com a combinação secreta com o banqueiro, nem por ter depois enganado o banqueiro renegando a combinação secreta, mas por ter desde a primeira hora declarado o virar de página na CGD como uma bandeira política, e se ter passado um ano sem virar página nenhuma. Mas de cara lavada por, segundo o próprio, nunca ter acedido à pressão do banqueiro para alterar a lei à medida das suas aspirações pessoais.
Mas na melhor cara lavada cai a nódoa, e têm-se vindo a descobrir trocas de correspondência que provam que o governo tinha mesmo prometido ao banqueiro remover-lhe a obrigação de apresentar a declaração, que o decreto que a intentava remover tinha sido redigido em colaboração com os advogados do banqueiro, e que o governo tinha mentido ao país ao negar tudo isto. Nada de contraditório com o nível habitual de ética deste governo desde que se começou a formar, e nada de embaraçoso, que é tão embaraçoso para este governo ser apanhado a mentir e a traficar interesses públicos por privados como para o Donald Trump ser apanhado a fazer pleneamento fiscal: é, pelo contrário, motivo de orgulho por ter conseguido arranjar maneiras de enganar os outros.
Mas neste caso concreto havia um detalhe que, mesmo sem ser embaraçoso, podia trazer transtornos: além de, como o primeiro ministro e o secretário de estado, ter mentido a todo o país, o ministro também tinha mentido na comissão de inquérito no parlamento. Uns alegarão que é mais grave mentir ao país do que a uma comissão parlamentar. Mas, à luz da lei, é mais grave mentir ao parlamento do que ao país, porque enquanto mentir ao país só tem consequências políticas, o que significa que um bom equilibrista se consegue aguentar à bronca sendo mesmo apanhado a mentir, e é olhar para o Sócrates para ver a prova desta asserção, mentir a uma comissão parlamentar pode ter consequências penais. É motivo de orgulho, mas pode ser um incómodo.
Apanhado numa grande trapalhada, logo recebeu o apoio do doutor Rebelo de Sousa que, com um passado de jurisconsulto de prestígio, interrompeu o seu programa de comentário diário sobre a actualidade política para lhe oferecer as linhas mestras de uma boa estratégia de defesa: sem um papelinho assinado por governantes, não se pode provar que o governo assumiu o compromisso com o banqueiro. É uma linha de defesa genial, e tanto se aplica para livrar das garras da justiça governantes corruptos que não passaram recibo do prémio como violadores que não escreveram uma carta à vítima a confirmar a violação. O jurisconsulto ilustre teria dado um advogado de primeira linha se não se tivesse dedicado ao comentariado diário.
Mas, mesmo tendo a trincheira jurídica para se defender da acusação de mentira à comissão parlamentar já eregida, havia ainda que, que vivemos em democracia e a opinião pública acaba por ser regularmente vertida em votos, acalmar do povo o gran sussurro. Disso se ocupou a turma da propaganda do costume, desta vez liderada pelo recém nomeado director-adjunto de informação da RTP: a questão da mentira do ministro é um fait-divers, um assunto com que não se devia perder tempo que é precioso para discutir assuntos muito mais importantes para o país. Passa-se um pano sobre o assunto e não se fala mais nisso. Boa? Se não é boa é, pelo menos, o melhor quer se pode arranjar, e formou-se um coro a esconjurar a discussão com este argumento.
A drª Manuela Ferreira Leite, ex-presidente da Comissão Política Nacional do PSD, tal como o doutor Rebelo de Sousa, também juntou a sua voz a este movimento que apela ao branqueamento do caso das promessas ilegais feitas por governantes a um banqueiro, das declarações públicas dos governantes a anunciá-las, do acolhimento das sugestões dos advogados do banqueiro para redigir a lei para as legalizar, do recuo dos governantes quando perceberam que a medida afinal era impopular e lhes podia custar mais do que render, e do estado de negação absoluta em que entraram depois deste recuo desmentindo tudo, mesmo o que está documentado, para arrumar o assunto a tempo de salvar a pele dos aldrabões que começaram por albrabar o país cozinhando leis com o banqueiro, depois aldrabaram o banqueiro abandonando o compromisso, e agora aldrabam toda a gente negando tudo, a pretexto de não ser um assunto importante e haver outros mais importantes para discutir.
De facto há coisas mais importantes do que este caso específico, tão importantes que ele é apenas um mero caso específico de uma realidade geral. Há governantes que assumem em segredo compromissos ilegais com interesses privados. Há governantes que delegam nesses interesses privados a própria redacção das leis que legalizam a satisfação desses compromissos. Há governantes que enganam o país, e também enganam os privados com quem enganam o país assumindo compromissos secretos. Há governantes que negam, mesmo quando há provas a comprovar, as trafulhices que fizeram. Mas isto não tem nada de especial, é o dia-a-dia da política que em democracia se tende a resolver, se não de imediato, pelo menos com o tempo. Mas há ex-presidentes do maior partido da oposição, que no caso actual é o maior partido português medido pelos votos conseguidos nas eleições legislativas, a branquear estas pouca-vergonhas, fornecendo aos vigaristas sugestões para se defenderem formalmente contra a evidência dos factos, ou sugerindo que se deixe a vigarice ficar impune porque há coisas mais importantes para se discutir.
E o mundo está cheio de Trump e Le Pen à espreita de oportunidades como esta para dizer aos eleitores que o sistema está podre (como se estivesse mais do que uma fracção do grau de podridão a que pode ascender com eles) e estão todos feitos uns com os outros (o que não é sempre verdade mas, neste caso, e dadas estas posições, até parece que é).
Não, drª Manuela Ferreira Leite. Isto não é uma trica entre duas pessoas. Isto, incluindo os seus comentários a desvalorizá-lo, é uma ameaça à democracia.
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