Em tempos, tinha o hábito de, ao fim da tarde, parar num bar no regresso a casa, beber um gin (com gelo, água tónica e limão, ainda não havia a moda de acrescentar verduras e bagas suspeitas na beberagem), fazer as palavras cruzadas do Publico ou, ocasionalmente, ilustrar os outros frequentadores com as minhas opiniões sobre as controvérsias da semana.
O carro, parava-o à porta, em cima do passeio, numa rua com escasso movimento. Um dia, um dos dinâmicos executivos municipais que os eleitores se dão periodicamente ao trabalho de eleger resolveu fazer uma revolução no trânsito. Estas revoluções consistiam geralmente em aumentar o número de sentidos únicos, e portanto sentidos proibidos, espalhar semáforos como cogumelos, plantar parcómetros, e reforçar o policiamento, as multas, as receitas e a publicidade aos melhoramentos que a Câmara, extremosa, dedicava aos seus administrados.
E como as pessoas se deslocam de automóvel para ir de um sítio a outro, o excesso de voltas e voltinhas deu como resultado, como dá em toda a parte, que os destinos ficassem mais longe e as pessoas passassem mais tempo ao volante, o que, na inexistência de arruamentos novos, originou um aumento, inteiramente desnecessário, do tráfego.
Continuei a estacionar onde sempre estacionei, mas agora com o incómodo de ver os autocarros, que anteriormente por ali não passavam, a abrandar para não me riscarem a máquina visivelmente em contravenção. E mesmo não tendo um excessivo respeito por quanto idiota, local ou nacionalmente, inferniza a vida do cidadão, e quanta legislação é todos os dias defecada, não levo o comportamento anti-social a ponto de incomodar directamente o meu concidadão. Passei a parar longe, quando havia lugar.
Outros tempos. Que uma nova edilidade gastou milhões a alargar passeios, substituir pavimentos, aumentar as proibições de estacionamento, voltar a mudar os sentidos de trânsito, reforçar a plantação de semáforos e parcómetros, ostensivamente tornando a utilização do automóvel na cidade, na maior parte do tempo e dos lugares, a pain in the ass, como dizem os americanos com a elegância que se lhes reconhece.
Pouco tempo depois passei a ir ao tal bar apenas à noite, para jogar cartas ou snooker. E como o dono instalasse uma aparelhagem de karaoke, o estabelecimento adquiriu subitamente, dois dias por semana, uma grande clientela, infelizmente de moços que se sonhavam carreiras no mundo do fado ou, em casos mais graves, émulos de Freddie Mercury, e mocinhas que com frequência vestiam bem de coxas mas também ousavam cantar e, em algumas marés em que a barulheira amainava, emitir opiniões.
Numa das últimas vezes que lá pus os pés, inquiri junto de um responsável camarário, que estimava e calhava conhecer, por que razão quem mandava no trânsito insistia em infernizar a vida dos automobilistas, numa cidade que não é plana, não tem grandes concentrações senão as que a própria câmara incentivou em certas zonas por autorizar desnecessariamente a construção de prédios demasiado altos sem exigir lugares de estacionamento em quantidade suficiente, nem dispõe, embora pudesse dispor, de parques em quantidade suficiente para aquele efeito.
O homem, coitado, era de esquerda, razoavelmente culto (ainda que com opiniões um tanto controversas, como a de achar o século XX notável do ponto de vista das realizações artísticas) e inúmeras vezes me aconteceu em amenas cavaqueiras aceder ao mundo fascinante do amor à igualdade, ao colectivo, à mediania, à inveja social, à modernidade se caucionada por gurus do pensamento, e a um bom ramalhete de disparates de política económica que já então andavam no ar.
Respondeu-me que tudo isso era deliberado, para desincentivar o uso do automóvel. E falou-me nos transportes colectivos, na poluição, no bem que faz à saúde andar a pé, na bicicleta, que na altura ainda não se tinha tornado, como agora, artigo de moda, e na importação de combustíveis, até mesmo na competição absurda, mas real na nossa cidade, de carros de marca para efeitos de ostentação social...
Quanto aos transportes colectivos, disse-lhe o óbvio: que achava óptimo que fossem melhorados, e que os utilizaria quando pessoalmente os encontrasse mais vantajosos do que o meu carro, mas não antes. Quanto à poluição, que não estivesse em cuidados porque isso era um problema que tecnologicamente encontraria solução (e que, de resto, havia inúmeras cidades que tinham menos, e não mais, poluição do que no passado), e que de todo o modo não era premente na nossa cidadezinha. Quanto à saúde, que lhe propunha o negócio equitativo de não me preocupar com a dele, se retribuísse não se preocupando com a minha. Quanto à bicicleta (que eu, aliás, na altura usava com frequência, o que confirmava as suspeitas de alguns dos meus concidadãos de me faltarem uma ou duas aduelas) que lhe augurava problemas muito sérios do sistema cardíaco se ousasse pôr a barriga proeminente em cima de um veículo de tracção animal, no caso de o animal ser ele. Quanto à importação de combustíveis que o Estado nisso encontrava uma das suas maiores receitas. E quanto aos carros que cada um brilha como pode, e tem o direito de o fazer desde que com o que lhe pertence.
Acrescentei, finalmente, que eu não pretendia, nem tinha o direito, de dizer às outras pessoas como se devem deslocar, e menos ainda impor-lhes fosse o que fosse na matéria. E que era por isso que ele era de esquerda e eu não.
A tese nem convenceu nem caiu bem, mas ficamos, como já éramos, amigos - ambos tínhamos muito em comum, em particular um amor acendrado a finos muito gelados em copos velhos.
E a que vêm estas lembranças de há quase duas décadas? Bem, foram suscitadas por este artigo. A cidade não é a minha, nela não me sei deslocar senão com GPS, vou lá raramente, sei que o patético aparelhista do PS que ocupa a presidência a transformou num estaleiro para ganhar as eleições, fiado em que o munícipe o que quer é obra, e que a lógica dos melhoramentos é anti-automóvel, em favor do transporte colectivo e da bicicleta: li algures que se projecta, se é que ainda não existe, uma ciclovia até Vila Franca, o que inculca a esperança de poder um dia chegar a Condeixa, lá onde existe um monumento da autoria de Charters de Almeida, que Cavaco inaugurou in illo tempore. E como no topo da coluna tosca que o falecido projectou há um ninho de cegonhas, não parece rebuscado ter a esperança de que os dejectos vão parar à ciclovia, o que teria uma forte carga simbólica, ao mesmo tempo que reforçava o cunho naturalista do empreendimento.
Com o mal dos lisboetas posso eu bem, ainda que suspeite que não é inteiramente do bolso deles que saem os recursos para estes deslumbres. Mas que não se promova a construção de parques (em altura, o argumento da área ocupada, 15%, não só não impressiona como poderia não aumentar, crescendo todavia a disponibilidade de lugares), e que em vez disso se promova a bicicleta, numa altura em que o motor de explosão está perto de ser substituído pelo eléctrico, e em que o automóvel autónomo se deslocará mais depressa e com mais segurança, desafia o senso, a lógica e a liberdade.
Mao, um dos maiores criminosos do século passado, morreu em 1976, e não há hoje qualquer dúvida sobre a monstruosidade do seu regime. Apesar disso, há ainda maoístas bicicleteiros. E escrevem nos jornais.
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