A maquineta custou para cima de dois milhões de euros, era à época o último grito, os dois tipos que receberam formação para trabalhar com ela ficaram impressionados com a sofisticação do equipamento, os horários finlandeses e a merda da comida local.
Prudentemente, fizemos um seguro contra avarias. E, embora destas houvesse muitas, e a assistência se revelasse caríssima, abstivemo-nos de as reportar por caberem dentro da utilização e desgaste normais.
Até que, em 2013, catrapum, um badagaio total.
Veio o especialista e deu um veredicto, e um orçamento, desagradáveis: a coisa ficaria bem acima de 40.000 euros, mas só desmontando é que se podia apurar a extensão dos estragos, e tal operação implicava a deslocação de técnicos estrangeiros durante xis dias, a tanto por cabeça e dia, mais viagens.
Inteirada destes tristes sucessos, a companhia de seguros ligou o complicador: papeladas, relatórios, trocas de e-mails. E, após peritagem por um técnico que nomeou, informou que era necessário desmontar a máquina para apurar o custo real da reparação, que ao técnico em questão, que do assunto sabia sobretudo que tinha de agradar a quem o contratou, “parecia” estar orçamentado com manifesto exagero.
Informámos que a desmontagem custaria em si um montante elevado, constante aliás do orçamento que havíamos apresentado, e que entendíamos dever ser a seguradora a suportar tal custo; que não víamos nenhum inconveniente em que ela escolhesse outra firma, e não o representante da marca, para efectuar a reparação, desde que garantisse o resultado; e que o arrastar de pés que toda a indecisão nos estava a provocar ocasionava um prejuízo para o qual não deixaríamos de exigir indemnização.
Seguiu-se a troca da correspondência em língua de pau em que as companhias – as que conhecemos – estão especializadas. E em 2014 foi interposta a competente acção judicial, da qual não ouvimos mais falar até aí há pouco menos de um ano, quando o tribunal exigiu concretização dos prejuízos (tarefa aliás quase impossível, por razões que aqui não cabem).
Um dia chegou a notificação para toda a gente comparecer no passado dia 10 de Maio no tribunal. E lá se pediu às testemunhas, das quais a principal era um ex-trabalhador colocado na Itália, o sacrifício.
Da companhia veio um advogado simpático; ao nosso foram dadas instruções para aceitar, se lhe fosse proposto um acordo extrajudicial, um mínimo de determinado montante; e após rapidíssimas negociações foi acordada uma indemnização de 34.000,00 euros.
A juíza homologou o acordo, no qual a seguradora se comprometia a enviar “no prazo de 30 dias” um cheque daquele valor para “o escritório do “ilustre mandatário da autora”; o representante da empresa, que era este vosso criado, apôs a sua conceituada assinatura; a juíza sorriu: e todos, menos a senhora, fomos ao snack ali perto, debaixo de um sol radioso.
Fez-se justiça? A juíza achará decerto que sim, acaso não foram as partes que desistiram do conflito? O advogado da companhia achará decerto que sim, então a companhia não acabou por pagar muitíssimo menos do que teria pago se aceitasse a reclamação de há cinco anos, e os prejuízos, fora o que poupou em juros? O advogado da empresa achará decerto que sim, então não conseguiu uma indemnização de valor superior àquela que o cliente o havia autorizado a aceitar?
Eu acho que não, que não se fez justiça. Os juízes sobrecarregados apreciam acordos, que não dão trabalho, em lugar de sentenças, que dão; os advogados, que não querem desagradar aos juízes, porque não ganham nada com isso, também os preferem, se puderem evitar julgamentos; as companhias de seguros, cientes destes factos, especializaram-se em deixar seguir ao menor pretexto as coisas para tribunal, certas de que não correm quaisquer riscos reais, e só podem ganhar com tais práticas; e as empresas, como os cidadãos, sabem que um mau acordo é preferível a um julgamento de resultado incerto, e que os meios de que dispõe uma companhia de seguros, especializada nestas mascaradas, excedem quase sempre aqueles dos que as demandam.
Ao trigésimo dia chegou, não o prometido cheque, mas um recibo: só assinando recibos declarando que se recebeu o que não se recebeu, portanto emitindo um documento falso, é que as companhias pagam. E não pagam logo, é preciso levar o recibo a um sítio qualquer e esperar que façam uma transferência.
É claro que eu, se fosse juiz e pudesse deixar de o fazer, não homologaria um acordo que junta a prepotência ao abuso, e no mínimo informaria os senhores advogados que não eram precisos 30 dias, nem recibos falsos, nem assinaturas, nem chatices.
E é claro que existe uma entidade de supervisão das seguradoras à qual pode recorrer quem quer que, por ingenuidade, imagine que as entidades de supervisão supervisionam alguma coisa em Portugal. Mas a mesma experiência que leva os cidadãos prudentes a aceitar acordos injustos também aconselha a que não se perca tempo e recursos com entidades que existem para fingir que servem a celebrada defesa do consumidor.
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