Há um preconceito difuso segundo o qual o desempenho de lugares políticos de topo implica uma sólida bagagem cultural. Os políticos estão conscientes desse facto, e guardam-se, se inquiridos na silly season - um clássico - sobre o que andam a ler, de dizerem a verdade (por exemplo: olhe, menina, eu, tirando os jornais e relatórios ou memorandos de serviço, faz anos que não leio a ponta de um corno). Invariavelmente referem seja uns clássicos da literatura, seja os romances da moda ou, para os mais afoitos ou que sobraçam uma das pastas da economia e das finanças, um ou outro trabalho do último economista que descobriu o segredo do crescimento económico, ou do último sociólogo que analisou as causas da pobreza.
O jornalista não aprofunda, por delicadeza ou, mais provavelmente, porque também não leu; o consumidor do jornal, ou espectador, fica confortado no seu respeito pela personagem; e o ritual cumprido com geral satisfação.
Se a pergunta for sobre filmes, ai!, que ficaram encantados com a Fulana, ou Sicrano, cujos desempenhos foram superlativos no filme xis. E a gente acredita, que não oferece dúvidas o genuíno interesse que tem pela sétima arte uma absurda quantidade de gente que ignora as outras seis.
Os deslizes nesta área, se apercebidos, podem causar grandes danos: os famosos concertos para violino, de Chopin, desqualificaram Santana Lopes como não o fizeram posteriormente as trapalhadas que arrumou para a constituição do seu fugaz governo.
(Se bem que, sobraçando a pasta da Cultura, o lapso tenha ficado ao nível do daquele ministro da Marinha, que Eça inventou, e que localizou Moçambique na costa ocidental de África).
Sem este respeito pela cultura um político que se preze não vai longe, a menos que se louve, pelo menos, numa cátedra, caso em que os disparates são ignorados: Cavaco nunca se deu ao trabalho de arranjar quem lhe escrevesse os discursos, e nem por isso as xaropadas em economês através das quais sempre veiculou as banalidades que imagina serem o nec plus ultra da economia, da gestão e dos destinos do país deixaram de ser objecto do previsível aplauso da chamada direita, do ódio das esquerdas e do respeito daquela massa informe de cataventos a que se chama o centro.
Tudo isto é um equívoco. César foi um general ilustre, um político brilhante, o verdadeiro fundador do Império, antes de Augusto, e escritor de mérito; Marco Aurélio imperador e filósofo; Churchill estadista, historiador e escritor; e, muitos furos abaixo destes exemplos, também entre nós há homens de cultura que chegaram a lugares de relevo na carreira política - Teixeira Gomes, por exemplo, que foi presidente da república, ou Oliveira Martins, ministro. Mas estas, e outras, são as excepções: Reagan, que passa, possivelmente com boas razões, por ser um dos melhores presidentes que os EUA tiveram, aterrorizava os assessores, quando falava de improviso, por causa da sua prodigiosa ignorância, que o podia levar a cometer gafes em Geografia ou História; e, se inquiridos sobre Newton os chefes de Estado dos 28 países da UE, imagino sem esforço que boa quantidade diria que era um famoso ponta-de-lança, ou inventor de qualquer coisa eléctrica.
Na realidade, o político que deixa marcas tem um pequeno núcleo de ideias assentes sobre o seu tempo, o que fazer para modificar as coisas no sentido que acha desejável para a comunidade, e o que o futuro comporta, de ameaças e oportunidades; o resto são circunstâncias e tática.
Sucede que estamos em campanha para a eleição do Presidente da República. E mesmo que o lugar seja largamente cerimonial, e ainda que o que nos interessa para o nosso futuro dependa hoje muito mais de gente que nem conhecemos nem elegemos, porque são estrangeiros, do que do marmelo que vai ocupar Belém, quem não tiver vocação para abstencionista, como eu, tem que fazer uma escolha.
Recomendam-me Marcelo. O próprio, parece-me, é que não se recomenda.
Estaria disposto a perdoar os livros que aconselha, e dos quais com certeza não leu senão a badana, porque levo à conta de vaidade ingénua, e homenagem ao espectador iletrado e por isso susceptível de ser impressionado, esse afectado amor à leitura. E tenho a certeza de que não leu porque não tem tempo, nem, se tivesse, lhe faço a injúria de imaginar que apreciaria o lixo que promove.
Marcelo ama os pobres, que quer beneficiar, os ricos, que não quer prejudicar, os remediados, que quer promover, os velhos, que respeita, os novos, que compreende, os de esquerda, que não são menos cidadãos que os outros, os de direita, dos quais está mais próximo quando não está afastado, e a todos oferece o seu afecto. E também isto lhe perdoo porque quem ama toda a gente não ama ninguém, e realmente o amor presidencial só não é uma figura de retórica para os filhos, se os tem, para a mulher, se for casado, para os parentes chegados, se se der com eles, e para os amigos, se os conserva.
Sobre a União Europeia, o Mundo, o Serviço Nacional de Saúde, o destino do Braga e a forma como vai decorrer o Campeonato Europeu, ou o problema dos refugiados ou do Estado Islâmico, podemos estar certo que dirá coisas simpáticas, esperançosas e inócuas - exactamente como um João Semana bondoso, perorando aos basbaques no café da aldeia, ao fim de semana.
No concreto, e sobre o múnus da presidência, Marcelo diz nada. Por exemplo: quando o regime costista der de si, porque o PCP já espremeu o que havia a espremer, ou porque as contas derraparam, ou por outra razão qualquer, faz o quê?
Promove o consenso, ora - aquilo é o campeão dos consensos. E esta palavra sensata e mágica é o véu com que cobre não a ambição, que lhe perdoaria, mas a vacuidade, que lhe suspeito e pode ser perigosa.
Marcelo é uma incógnita: apesar de se oferecer, anos a fio, à curiosidade pública, e de fascinar uma larguíssima corte de seguidores com os seus inegáveis dotes de comunicador, ninguém se lembra de uma ideia original, um dito particularmente agudo, uma tese controversa, um entendimento claro sobre o que deseja para o país a mais de um ano, o que acha sobre o futuro da União Europeia, até mesmo o que pensa sobre a nossa história das últimas décadas, e porque estamos como estamos - nada.
É brilhante - também as lantejoulas. E porque suspeito que o Presidente da República será chamado a tomar decisões que não consistirão apenas na escolha dos peitos onde vai dependurar medalhas, ou dos lugares que vai honrar com os seus discursos de circunstância, e sem saber por onde vou - sei que não vou por aqui.
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