Quarta-feira, 15 de Abril de 2015

Modelos e visões

Suponho que para muitos leitores compulsivos a partir de certa altura na vida (no meu caso, muito cedo) o livro lido rapidamente se esquece e o que lá estivesse vai-se depositar num confuso rio subterrâneo de ideias que se vão formando sobre o passado, o presente e as pessoas.

 

Li há anos A Era dos Extremos, de Eric Hobsbawm, e não me lembro senão da impressão que me ficou de que o autor, que fora comunista, construía uma história hábil do séc. XX, não apenas para desculpar todos os que, como ele, não quiseram ver nenhuma das denúncias dos crimes monstruosos que a doutrina, na prática, produziu, nem tiveram a lucidez de perceber que não poderia produzir resultados muito melhores, como insinuava que almas lúcidas, progressistas e generosas não poderiam ter sido, no contexto da época, outra coisa.

 

Para tirar a impressão a limpo teria que reler, e talvez venha a reler um dia - mas não decerto Eric Hobsbawm.

 

Lembrei-me dele ao ler esta entrevista. João Salgueiro faz um esquisso da nossa história recente, desde a adesão à CEE, passando pelo sistema monetário europeu, pelos tratados, pela reunificação alemã, pelas adesões dos antigos países de Leste, pela globalização, e pelos múltiplos factores, incluindo o demográfico, que fazem com que a Europa esteja no caco que está, e Portugal num relativo impasse - ou ao contrário, como se queira. E, sem fazer mea culpa sobre as escolhas que nos trouxeram aqui (salvo de 2000 em diante - como se para trás as opções tomadas, por Salgueiro e a geração política a que pertence, tivessem estado inscritas na ordem das inevitabilidades), diz, a certo passo:

 

"Um novo modelo económico implica, por sistema, uma metodologia e benchmarking. Procurar avaliar o exemplo das economias que têm conseguido melhores resultados, economias em vários continentes e de dimensão diversificada, como a Alemanha ou Dinamarca, Singapura, a Coreia ou a China. Na diversidade de condições e de recursos, esses Países têm em comum terem sido capazes de criar sistemas que encorajam e atraiam investimento produtivo".

 

Procurar avaliar?! Mas haverá, nestes países, alguma coisa de comum que se encontre apenas neles e não noutros, e que possa ser usada como modelo? E será sequer boa ideia usar seja que modelo for como se as circunstâncias concretas das nossas tradições, instituições, hábitos, realidades, cultura, não fizessem com que certas medidas, que produziram resultados positivos noutros lados, não produzam os mesmos aqui?

 

Por mim preferia, em vez de declarações grandiloquentes, visões, e modelos, ideias práticas dentro de uma - uma só - ideia geral. E essa seria que a economia funciona - se a deixarem. Salgueiro, por ínvios caminhos, não anda longe quando diz:

 

"... quais as melhores condições para encorajar o investimento produtivo:

– estratégia de desenvolvimento credível e estável;
– sistema de justiça que garanta o respeito da lei e a resolução de conflitos, em tempo útil;
– erradicação da burocracia, com uma Administração Pública amigável, transparente e inovadora;
– avaliação, rigor e disciplina das finanças públicas, fundamento da moderação fiscal
– sistema de ensino e investigação, formador de competências e favorável ao investimento e ao emprego;
– encorajamento do espírito de iniciativa, pela valorização dos mercados de concorrência, para os factores de produção e para os produtos".

 

Excepto pelo facto de alguns destes factores não estarem presentes em alguns dos países de sucesso que elege como inspiradores (respeito da lei na China, francamente!, quando abundam os exemplos de empresas que lá se fizeram grelhar quando em conflito com locais ou autoridades); pondo sob suspeita a "estratégia de desenvolvimento" se com isso se quiser significar comités de sábios a decidir os sectores ou empresas que têm ou não futuro; precisando de esclarecer o que diabo será um sistema de ensino "favorável ao investimento"; e descontando o último ponto, que não significa rigorosamente nada: falta apenas esclarecer como se dá conteúdo a cada um destes desideratos.

 

Sobre isso Salgueiro diz três coisas: i) "Em diversos sectores, temos vindo a registar significativos progressos, que poderiam ter tido lugar muitos anos atrás." Realmente. Deve tratar-se de empresas lançadas por emigrantes retornados da Alemanha, ou da Coreia; ii) "Está à vista o potencial existente em alguns dos nossos portos – e muito em especial o caso de Sines". Sim, está à vista. E já estava quando Salgueiro era um político activo; iii) "E também o potencial que resultaria de melhores ligações ferroviárias de mercadorias à Europa". Sim, o candidato Neto farta-se de falar nisso, e é capaz de ter razão.

 

A despeito de tudo o que antecede, Salgueiro é uma das pouquíssimas personalidades que mantém uma dose visível de dignidade e distinção. E talvez fosse uma melhor alocação do meu tempo entreter-me a cascar nas vacuidades de Costa, nos simplismos fósseis de Jerónimo, ou nas doutorices proto-presidenciais de Carvalho da Silva, um comunista da variedade mais perigosa, que é a que finge que o não é. Mas sou exigente com os meus, e para os outros sobra-me em tolerância o que me falta em paciência.

publicado por José Meireles Graça às 12:32
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