Comecei a ler o projecto de programa eleitoral do PS mas ao cabo de 5 páginas já estava a ler na diagonal; ao fim de 10 saltava parágrafos; e rapidamente desisti: uma das razões porque ninguém lê estas coisas é o excesso de palavreado equívoco, a ausência de quantificações e a superabundância de boas intenções, embrulhadas em retórica eleitoraleira. De toda a maneira, o que cada governo faz depende muito, nos pormenores, das circunstâncias e das personalidades concretas dos ministros, e as primeiras mudam, e os segundos não sabemos - ninguém sabe - quem são.
Sabemos quem se propõe ser o Primeiro-ministro do PS. E não ignoramos que é um treteiro contumaz, que ora vê grandes esperanças na eleição do Syriza, ora se propõe respeitar o Tratado Orçamental, ora quer que a Justiça siga o seu curso no caso Sócrates, ora quer retomar todo o delírio despesista e crescimentista que aquele cônsul detido protagonizou, e à sombra do qual pôde, juntamente com outras figuras menores, encher o bornal e arruinar o país; e que, dia sim, dia não, promete alguma coisa a algum grupo de cidadãos, sempre com o mesmo fio condutor: entre senhorios e inquilinos, beneficia os inquilinos; entre patrões e empregados, estes últimos; e entre funcionários e contribuintes, ou entre pensionistas e activos, os primeiros. Ou seja, a ideia do bem público que Costa tem é agradar ao maior número, apostando no interesse imediato, mesmo que a prazo as escolhas que faz se voltem contra todos. A prazo estamos todos mortos, deve pensar; e mesmo que não estejamos, e a Europa lhe reduza a farrapos a longa lista de promessas, depois de eleito logo se vê: nunca nenhum governo cumpriu as promessas que fez, e o eleitorado não leva a mal as aldrabices, que esquece, dizem os sábios, ao fim de 6 meses. A ideia que tem do interesse nacional é esta: o PS no poleiro; ele no cume da carreira política, ainda com o brinde, se o futuro o proporcionar, da presidência da República, onde se fala muito e se decide nada; e a União Europeia para servir de desculpa para a marcha-atrás nas promessas, para suportar os défices e garantir a criação de riqueza pelo princípio dos vasos comunicantes entre países ricos e pobres.
Este homem gorduroso, nas ideias, nas intenções, no discurso e no aspecto, é um perigo: nada o distingue, no essencial, do recluso 44, salvo, talvez, a honestidade pessoal, a, aliás fingida, bonomia, e o corte dos fatos.
Não é que, na parte que li do programa, não haja coisas que mereçam atenção - mau seria que as 134 páginas contivessem apenas lixo. Por exemplo:
"Reformar o sistema eleitoral para a Assembleia da República, introduzindo círculos uninominais, sem prejuízo da adoção de mecanismos que garantam a proporcionalidade da representação partidária, promovendo o reforço da personalização dos mandatos e da responsabilização dos eleitos, sem qualquer prejuízo do pluralismo".
Sem ser um entusiasta desta solução (o peso do Estado na vida económica, por um lado, e o nosso tradicional centralismo, por outro, podem perfeitamente transformar o deputado num procurador de interesses regionais, trocando-se a dependência do chefe do partido pela dependência dos potentados locais) o assunto merece discussão. Mas já não merecem anedotas como as que se seguem, respigadas das páginas que ainda tive coragem de ler:
"A adoção de um Orçamento Participativo a nível do Orçamento de Estado, prevendo-se a afetação de uma verba anual determinada a projetos propostos e escolhidos pelos cidadãos a financiar e realizar em certas áreas do Governo e da Administração Estadual".
Não chega a Assembleia da República, autarquias, Conselhos disto e daquilo, sindicatos, associações de todo o tipo, grupos de pressão, ONGs, vamos ainda escancarar a porta do barulho e da arruaça aos "cidadãos" - a designação convencional, neste contexto, para comunistas e activistas sortidos. Democracia representativa, já ouviram falar?
"O desenvolvimento de um projeto de “Perguntas Cidadãs ao Governo” como forma de facilitar o contacto entre o Governo, a Administração Pública e os cidadãos, oferecendo a qualquer cidadão a possibilidade de submeter qualquer pergunta ao Governo ou à Administração Pública, cabendo a uma entidade pública designada assegurar, em ligação com as entidades relevantes, o respetivo esclarecimento em prazo razoável".
Temos portanto uma nova entidade pública, recheada de boys, para responder a perguntas cidadãs. Imagino que sejam, por nada mais me ocorrer, perguntas formuladas por mulheres metediças, mas ocorre sugerir que o desejável reforço da participação delas na vida pública, a fazer-se, não deveria implicar aumento de despesa.
"A dinamização de mecanismos de auscultação permanente dos Movimentos Sociais e do Cidadão, através dos quais o Parlamento e o Governo os possam contactar e auscultar com regularidade".
A auscultação é absolutamente essencial em processos de diagnóstico, mas deveria confinar-se à relação médico-doente. Porque, aplicada aos movimentos sociais, significa na prática sacrificar o interesse geral ao interesse de grupos de pressão - precisamente o oposto do que um governo sério deve fazer.
"A introdução de benefícios para as entidades patronais que criem condições para a participação cívica dos seus colaboradores".
Uma pequeníssima empresa de que sou sócio fundador está neste momento a ajudar a amamentar uma linda menina, pelo expediente de dispensar a mãe duas horas por dia, sem quebra de remuneração, sem que nenhum dos gerentes tivesse tido a mais remota participação no processo de concepção da criança. Ignoro se este gesto altruísta, aliás obrigatório, a qualifica para a obtenção de benefícios, mas a minha vasta experiência sobre empresas, ajudas, e o Estado, autoriza-me a recomendar que este encare a possibilidade de não fazer nada para ajudar - mas, se não for pedir muito, alguma coisa para remover obstáculos.
"A reintrodução da área temática de Educação para a Cidadania nos currículos escolares".
Qual cidadania? A do PS? A dos maluquinhos do aquecimento global, dos maníacos da igualdade, dos europeístas, dos eurocépticos, dos amigos dos animais, dos democratas, da Constituição, do Código Civil, do manual de boas maneiras da Senhora Bobone? Deixem as crianças jogar futebol, e os pais educá-las, ou não. E, na escola, ensinem-lhes a escrever, raciocinar, ciências, história e línguas - já é muito.
"Estabelecer prazos máximos de decisão em sede de fiscalização sucessiva abstrata da constitucionalidade, pois a sua ausência tem originado uma grande imprevisibilidade nos prazos de decisão".
Olha que bom. E se o tribunal não cumprir, como é evidente que não cumprirá, os senhores juízes serão obrigados, de penitência, a pagar coimas, deixarem de ter automóveis de função ou recitarem o programa do PS?
"Fixar duas datas por ano para entrada em vigor de toda a legislação que afete o funcionamento das empresas".
Excelente ideia. 30 de Fevereiro e 31 de Novembro parecer-me-iam duas datas judiciosas.
"A criação da possibilidade de obtenção de uma declaração de prova da incobrabilidade de IVA, sem recurso à via judicial, nos casos em que essa via ainda não existe".
Pelos serviços de cobrança do IVA as empresas recebem nada, o que se compreende. E uma legislação celerada obriga, desde os tempos de Cavaco, que é o pai do aborto, a que paguem ao Estado o que não cobraram, nem devem. O PS quer corrigir um abuso despejando-lhe em cima um expediente que, no melhor dos casos, diminui o tempo de duração da iniquidade. O esterco legislativo ficará decerto menos mal cheiroso - uma forma de progresso.
Chega, o resto é farinha do mesmo saco. Quem quiser um excelente resumo, porém, pode ler isto, e já fica inteirado do que o pode esperar se votar mal.
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