Nosso Senhor, que me marcou, algum defeito me achou.
Em 2012 tornei-me um cidadão de parte inteira por ter passado a ser portador, ao cabo de um processo conturbado, do cartão que atesta aquela condição.
O cartão caducou. E em Setembro último, ao intentar renová-lo, tropecei em inesperados obstáculos, que aqui relatei.
Acabei por os ultrapassar no dia 26 daquele mês, a troco de mais de uma hora e 15 euros. E fiquei à espera da abençoada carta que me habilitaria a ir à repartição, pagar o estacionamento, e esperar o tempo que os monitores de televisão mandassem para trocar o velho plástico caducado pelo novo que atesta o meu renascimento para as alegrias da cidadania.
A carta nunca mais veio e confesso, confundido de vergonha, que esqueci o assunto. Porém, foi-me pedido há dias que assinasse um recibo para receber uma indemnização de uma companhia de seguros.
As companhias de seguros exigem que se lhes entregue um recibo que diz que recebemos, uns dias antes de efectivamente pagarem - portanto um documento falso. Mas esta prática é pacificamente aceite por toda a gente, incluindo advogados e a entidade de supervisão, pelo que o segurado precavido alinha na aldrabice porque não tem outro remédio.
Mas, ó horror, no mesmo dia fui inteirado de que a assinatura não valia porque o cartão estava caducado. Portanto, de indemnização nicles, para já.
É bom de ver que fui asinha à internet para desenlaçar a meada no site do Instituto dos Registos e do Notariado. Mas perdi-me na salganhada internético-oficial e optei por ligar para o número que constava no certificado do pedido.
De lá veio o palavreado das opções (marque o número um se quer isto, o número dois se quer aquilo, e assim por diante; após o que, feita a escolha, há uma nova lista de números para optar), seguido de música e da generosa sugestão de que, como o tempo de espera previsto era superior a cinco minutos, o melhor seria talvez ligar mais tarde.
Enfim, lá consegui. E a simpaticíssima funcionária que me atendeu, Isabel Xavier de seu nome, explicou ao "senhor José Maria" que o novo cartão tinha sido emitido três dias depois do pedido, portanto há muito, e que a abençoada carta ou estava extraviada ou tinha sido devolvida. Porém, de momento não podia verificar, pelo que me ligaria para o telemóvel mais tarde. Enviar-me um e-mail não podia, para levantar o cartão era precisa a cartinha pelo correio.
Não ligou. E no dia seguinte repeti de manhã os passos nos quais já estava a ficar perito, atendendo-me um Sr. Aquiles que, inteirado do historial, foi de parecer que o melhor era fazer uma segunda via do pedido. Signifiquei ao funcionário uma parte dos meus sentimentos a respeito da opinião dele, que retorquiu ao "meu amigo" qualquer coisa. Esclarecido pelos meus bons ofícios de que não era amigo dele, separamo-nos, creio que sem ter criado laços de amizade.
Mas segui-lhe o conselho. E, de tarde, desloquei-me à repartição onde já seria um velho conhecido do porteiro, se o houvesse, tirei a senha com a ajuda de uma jovem, por sinal atraente, que estava ao corrente de que era preciso pescar o papel um pouco acima de onde ele deveria estar na maquineta, e ao cabo do tempo de fumar um cigarro, se se pudesse fumar, fui atendido.
O funcionário deu-se ao trabalho de verificar se a cartinha, por artes do diabo, estaria lá - não estava -, sugeriu que talvez nos CTT estivesse, explicou o complicado trajecto das cartas que são devolvidas (aparentemente estas andam de maço para cabaço antes de chegarem ao sítio onde ninguém as encontra) e foi rapidíssimo. Antes porém que preenchesse a papeleta, chamei-lhe a atenção para o facto, de que me havia apercebido na conversa com a sua colega lisboeta Isabel, de o meu número de porta estar registado como sendo o 119 quando é o 118.
Fez-se luz: se calhar era isso que explicava o descaminho. Olhei-o, dubitativo, esclarecendo que a rua (aliás uma travessa) só tem três casas, o número 119 não existe e vivo ali há mais de quarenta anos; mas que, de toda a maneira, com o novo pedido, pela diferença de um algarismo é que a preciosa cartinha não se extraviaria.
O homem, um tanto contrafeito, confidenciou-me que isso não ia poder ser. E porquê? Ora, porque para alterar a morada era preciso o cartão novo. Trémulo, disse que tinha ali o cartão velho, onde a morada estava bem, se é que estava, porque ela não figura no cartão, só na parte secreta lá duns alçapões. Mas nada feito.
Pelos vistos, sem o cartão novo não posso receber o novo cartão.
Estamos nisto, pelo que creio que é altura de meter uma cunha.
Quem superintende nesta área dos cartões, dos serviços públicos, da internet e do simplex, é a ministra Maria Manuel Leitão Marques, que não conheço pessoalmente. Porém, dá-se a feliz circunstância de ser casada com um colega da blogosfera, Vital Moreira, que também não conheço pessoalmente, mas ao qual já me aconteceu fazer referências favoráveis, por, pertencendo à ala direita do PS, lhe acontecer desalinhar do asneirol típico do partido. Tanto, aliás, que não é descabido pensar que fosse a esperança média de vida aí de uns cento e vinte anos, e não apenas oitenta, Vital, que foi deputado à Constituinte pelo PCP, ainda acabava na direita.
Tenho portanto uma ligação ao ilustre casal. E isso me autoriza alguma familiaridade:
Nelinha, o teu lugar existe para ajudar, com anestesia, a tornar o cidadão completamente dependente do Estado, e criar as condições para um dia, quando a democracia acabar, a ditadura ter uma panóplia de instrumentos ao dispor que fariam a Stasi corar de inveja.
Com anestesia. O que quer dizer que não é boa política tornar desde já a vida dos cidadãos num inferno.
Vê lá se dás um jeitinho, Nelinha.
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