Tinha admitido que a pasta da Justiça me viesse a ser adjudicada, por sorteio, num próximo Governo, se trilhasse o seu caminho a justa reforma que, com assinalável rasgo, e insuficiente impacto, congeminei para o nosso sistema eleitoral. Calçaria sapatos de ilustres predecessores: sem ir ao Estado Novo, onde o cadeirão ministerial estaria assombrado ainda por gigantes do Direito como Antunes Varela ou Pires de Lima, e menos ainda ao séc. XIX, onde avulta o Visconde de Seabra, sempre na III República teria como antecessores advogados ilustres, como Salgado Zenha, juízes, como Laborinho Lúcio, ou um penalista como Eduardo Correia - o suficiente para intimidar outro menos desempoeirado e atrevido do que eu.
Sucede que a Justiça está num canho. E para o saber não é preciso ser advogado ilustre, ou magistrado, ou professor de Direito. Chega a ser sustentável, aliás, que qualquer dessas condições inibe o discernimento porquanto, não cessando o lugar de ser preenchido por profissionais da área, não tem ela cessado também de degradar-se, pelo que é melhor confiar no juízo de quem frequenta os tribunais na condição de arguido, réu, testemunha, ofendido ou queixoso.
Ou então confiar nos gráficos (quadro 4). São bastante lisonjeiros - poderemos perfeitamente estar à frente dos três países que não apresentaram dados, se os dados que esses países apresentarem forem piores que os nossos.
Só nos falta portanto aproximarmo-nos dos restantes 24.
Para tanto, não podemos fazer alterações legislativas baseadas em palpites - isso é o que cada novo ministro faz, tradicionalmente, e portanto insistir na mesma receita não pode produzir resultados diferentes.
Não resolve apostar (com desculpa do chavão) em informática (quadros 21 a 25), estamos no topo. E gastar mais dinheiro, se fosse possível, não seria uma escolha criteriosa: ver quadros 38, 40 e 41 - com menos despesa há quem esteja muito melhor no desempenho.
Poderíamos talvez retirar a licença a alguns advogados (a Ordem agradeceria), a fim de ficarmos na média - quadro 42 - mas como estes dependem deles próprios e dos clientes, e não do Orçamento, não se vê a vantagem de um tal extermínio. E também não se vê que mais juízes, se pudéssemos falar de mais despesa aqui sem falar de menos despesa noutro lado, fosse uma escolha defensável: há quem - quadro 43 -, com menos, faça melhor.
Também não se vê que discriminar positivamente o mulherio, em obediência à moda do igualitarismo sexual, trouxesse qualquer benefício: as mulheres já são a maioria na primeira instância - quadro 45 -, sê-lo-ão também a prazo - quadro 46 - nas instâncias restantes. Além de que está por demonstrar que a performance delas esteja acima da dos colegas homens. Suspeito aliás que, na idade fértil, estará abaixo.
Com este quadro como é que eu farei, quando tomar posse? Vamos a isso:
1) Por volta das 11H00 da manhã já estarei no Terreiro do Paço, a tomar cafés (três), a ver o e-mail particular e a conversar com os secretários de Estado. Logo ali lhes direi que não tenciono tomar qualquer decisão que tenha que ver com o funcionamento do ministério, nomeações e rotina, tarefas que lhes delegarei por completo, sob reserva de não estarem autorizados em caso algum a gastarem mais um cêntimo do que no ano anterior; que apenas reservo para mim a assinatura de diplomas, embora tenha a intenção de devolver a maior parte, se não estiver absolutamente convencido - e quase nunca estarei - de traduzirem uma palpável melhoria; e que, dos poucos com os quais concordar, enviarei a maior parte para um grupo seleccionado de professores de Direito (que não incluirá o Prof. Marcelo, por razões de discrição e por ter horror a cata-ventos), se não tiverem sido anteriormente ouvidos, após o que, em geral, ignorarei os conselhos que ministrarem; e que portanto serão eles que se deslocarão à Assembleia da República para prestarem contas, dado que os senhores deputados se cansarão rapidamente de um ministro que não sabe, nem quer saber, de nada, para além de interromper as sessões, de meia em meia hora, para fumar.
2) Estudarei com vagar uma lista de professores, magistrados, sindicalistas na área da Justiça, polícias e presos, elaborada com a precaução, segundo informações recolhidas, de excluir idiotas, para o efeito de os receber em dia e hora que lhes convenha para almoço, jantar, ceia ou tardes, depois da sesta, a fim de os ouvir sobre o que fariam para curar os males do seu sector, sem porém jamais tomar decisão alguma.
3) Perguntaria por escrito a juízes e funcionários dos tribunais mais sobrecarregados se estariam dispostos a aceitar que uma empresa de organização e métodos fosse fazer um trabalho de campo para avaliar se, sem mudanças legislativas, ou apenas mudanças de pormenor, seria possível agilizar o processo decisório, aliviar os incómodos dos cidadãos e as tarefas dos funcionários. E, se tropeçasse em resistências ou obstáculos, faria umas poucas secções-piloto, em tribunais, inteiramente constituídas por voluntários, para este efeito.
4) Destas empresas contrataria uma mão-cheia, com um prazo generoso - não menos de seis meses -, para produzir um relatório.
5) Enquanto as empresas se esfalfavam, as conversas prosseguiriam, sempre com o mesmo princípio: Está bom, o cafézinho? E o cigarro, incomoda? Olhe, senhora juíza (suponhamos que é uma juíza) imagine um tribunal sob sua responsabilidade, onde dirige o pessoal todo, contrata ou despede quem entende, fixa prémios e objectivos, administra directamente, ou por interposta pessoa, tudo o que tem que ver com as condições de funcionamento, apenas com a limitação de se manter dentro de um orçamento cujo limite é o que o Estado e os cidadãos gastam habitualmente para a realização da justiça nas pendências, ou processos, que conseguir levar a termo. Acha isso possível? Se não, o que acha que se pode fazer que melhore e dure, sem gastar mais?
Mau seria se ao fim de seis meses de paleio inconsequente não começasse a aparecer algum fio condutor - alguns pontos pacíficos onde fosse possível melhorar, alguma ideia-mestra que reunisse consenso suficiente.
Pela mesma ocasião as tais empresas apresentariam as suas recomendações. E estas seriam remetidas aos sindicatos e abertas ao comentário e sugestões de todos os magistrados e funcionários, desde o porteiro ao chefe da secretaria, durante um tempo mais do que suficiente.
Após o que chegaria a hora de ponderar, meditar sem pressas e decidir pôr no terreno novas soluções - à experiência, com voluntários e durante um larguíssimo prazo.
Enfim, tretas. Que Nero disse: Qualis artifex pereo! - Que artista morre em mim! E eu só não direi a mesma coisa substituindo o artista pelo ministro porque não estou perto de morrer e tenho ainda outras pastas para as quais poderia, se houvesse senso neste mundo, oferecer os meus préstimos.
Talvez o destino, afinal, me reserve a Saúde. E, excepto pelo facto de as minhas ideias sobre o Serviço Nacional de Saúde poderem eventualmente levar a um surto de enfartes e AVCs, creio que há espaço para grandes reformas que produziriam bons resultados, embora impliquem uma cirurgia prévia, consistindo em extirpar da cabeça dos Portugueses a ideia de que um serviço marxista - de todos segundo as suas possibilidades, a todos segundo as suas necessidades - pode funcionar bem.
Fica para outra maré, que a actividade reformadora é extenuante.
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