O eleitorado borrifou-se para as eleições europeias: não sabia quem eram os candidatos, quem eram os deputados que lá estavam, o que fizeram, e o que vão fazer estes agora eleitos. Sabe difusamente que ganham bem; e que nenhum dos futuros deputados é contra a Europa dos subsídios. A Europa dos subsídios é boa, como é a dos empregos quando falham aqui, a dos empregos mais bem pagos quando aqui são mal, e, para a juventude, o Erasmus. O Euro deixou de ser assunto porque criou a sua própria realidade: agrada à direita porque obriga a disciplina orçamental; agrada ao PS porque, fazendo da necessidade força, descobriu que mesmo com ele e a disciplina a que obriga pode ganhar eleições; agrada ao eleitor porque tem no bolso a mesma moeda que o alemão ou o francês; e, desagradando ao Bloco, e mais ainda ao PCP, nenhum dos dois quer, por razões tácticas, insistir num cavalo perdedor, sendo que o Bloco, por estar a caminho do poder efectivo, tende a ser cada vez mais europeísta e institucional, guardando o esquerdismo para as cores do arco-íris.
Não havendo nada para discutir sobre o “parlamento” europeu, discutiram-se as trincas caseiras. Mas nenhum dos candidatos o era para governar, e todos foram eco das posições dos respectivos partidos sobre a governação do país, razão pela qual o que estava em jogo era apenas uma mega-sondagem. À qual os consultados, à altura de quase 70% (provavelmente menos: ninguém afiança que os cadernos eleitorais estejam expurgados de mortos. O que é estranho, num país onde a máquina do Estado, se quiser, pode apurar quantas pessoas sofrem de hemorroidal, mas não é capaz de actualizar a lista de cidadãos eleitores) disseram não querer responder.
O PCP continua a perder eleitores (quase 200.000), e o herdeiro natural dos votos perdidos é o Bloco. Entende-se: as posições do PCP dentro da geringonça mal se têm distinguido das do Bloco. Como as credenciais democráticas dos comunistas inexistem, e as bloquistas parecem existir, além do que tem uma retórica mais moderna, fracturante e flexível, ao PCP restaria ser o depositário da esperança de uma sociedade alternativa. Se tudo o que tem para oferecer é o apoio a funcionários públicos e pensionistas, agora que até os sindicatos se atrevem a ignorá-los porque sabem que no essencial o PCP está amarrado ao que o governo decide, votar comunista não vale a pena. A actual direcção do PCP fez um gambito errado, que o partido seguiu por causa do centralismo “democrático”. E só não é garantido o abençoado enterro desta associação de malfeitores porque não é impossível que mudem de orientação, sobretudo se uma futura geringonça incluir o Bloco no governo mas não o PCP (se incluísse também o PCP, o suicídio confirmar-se-ia – comunistas não resistem a experiências governamentais, a menos que liquidem os compagnons, a democracia e a alternância).
Nem o PSD nem o CDS perderam votos em relação a 2014 (pelo contrário, ganharam um pouco mais de 20.000; se incluirmos a Aliança, o Chega e a IL, que presumivelmente integravam a PàF, o ganho é de cerca de 144.000). Porém, a base de cálculo é diferente porque há quase um milhão de novos eleitores. Donde, a chamada direita teve uma clara derrota.
Que fazer com a derrota? O que há a fazer é evidente, já que os eleitores que faltam para derrubar a situação estão em casa, pelo que é preciso ir lá buscá-los.
O busílis é como. Rui Rio, no inacreditável discurso de derrota da noite eleitoral, disse isto: estou convencido de que, se fizer mais do mesmo, o eleitorado que agora me mandou bugiar mudará de opinião daqui a três meses. O homem é teimoso, mas nem ele acreditará numa tese destas, pelo que, traduzindo, afirmou que conta perder as eleições legislativas mas ir para o governo na posição de sócio júnior, fazendo então as reformas de que o país precisa, com o amigo Costa.
Costa, porém, não sabe o que são reformas, mas sabe o que lhe convém para preservar o seu couro político. Fará portanto as alianças que forem necessárias para continuar a andar de carro com motorista e ter o poder de distribuir lugares no aparelho de Estado. E como, na sua abissal ignorância sobre o que conviria fazer para pôr o país a crescer seriamente, guarda instintos de esquerda, preferirá alianças com as maluquinhas do Bloco ou os comedores de tofu do PAN, caso em que, de reformas, podemos contar com a extinção das touradas, a modificação dos menus das cantinas escolares e o reforço da agenda LGBTI nos manuais do ensino.
Se viesse a aliar-se, por um bambúrrio qualquer do destino eleitoral, com Rio, é provável que alinhasse na loucura da regionalização que, longe de diminuir o peso do Estado, aproximaria este do cidadão, mas em veste da multiplicação de terreiros do Paço pelo país, de tiranetes pela província, e de publicanos a esmifrar o que resta de rendimento disponível.
Os eleitores que ficaram em casa poucas razões terão portanto para se incomodarem a dar o seu voto ao PSD nas legislativas. E no CDS?
Este partido nunca ganhou eleições e nasceu tarde para acaparar lugares no aparelho de Estado – já estavam ocupados. Quando chegou ao governo, foi como ancilar do PSD. Desde que Rio elegeu, como potencial aliado, o PS, o papel do CDS deveria ser falar, além do seu eleitorado tradicional (católicos, social-democratas que se autodescrevem como democratas-cristãos, conservadores, liberais e reaccionários sortidos) àquele do PSD que Rio desamparou.
Fez isso, mas sem consistência e com uma pecha triunfalista (nós vamos ultrapassar o PSD) que nem era realista nem podia cair bem. E ao mesmo tempo, como uma galinha sem cabeça, desatou a correr atrás de todas as causas em que houvesse descontentes, tomando-lhes as dores sem cuidar de saber que quaisquer posições, para serem credíveis, precisam de ter, antes de mais, autenticidade. Foi o caso com os professores: o CDS não pode, na oposição, defender coisas diferentes das que defenderia se fosse governo, porque o eleitorado não engole a patranha.
No lamber das feridas, é provável que as várias capelas dentro dos partidos derrotados reivindiquem para si a exclusão das outras, com o propósito de ganhar eleitores com consistência e unidade de propósitos. Puro engano: aos partidos de poder a consistência e unidade são fornecidas pela direcção, que todavia exclui da decisão sem excluir do partido – as tendências fazem parte da vida dos partidos que querem ser grandes. E é também seguro que as novas franjas de eleitores, sobretudo a miudagem que chegou hoje ao voto e traz a cabeça formatada pelas tretas do ambiente e da salvação do planeta, precisam de uma resposta. Mas essa resposta, mesmo que não muito convincente, não pode ser a mesma da esquerda, que consiste em mais leis, mais organismos, mais propaganda e mais despesa pública. Porque, nisto como no resto, o eleitor prefere os originais aos sucedâneos.
Nada mudará, provavelmente, nos três meses que faltam até às legislativas. E não é impossível que a provável vitória do PS se venha a revelar pírrica, porque o aparelho de Estado está anquilosado por falta de investimento de manutenção, a economia não cresce senão em doses minúsculas, o Estado Social dá mostras de esgotamento, e as contas públicas não melhoraram a ponto de se poder dizer que o país está preparado para resistir a uma crise.
Talvez portanto esta derrota seja menos má do que parece, porque da introspecção que vai provocar pode nascer uma melhor direita. Uma que ache que é possível demonstrar ao eleitor que se pode fazer melhor não com versões diferentes das mesmas políticas mas com políticas alternativas; e que, tendo desaparecido das análises políticas a maioria sociológica de esquerda, mas não tendo desaparecido da realidade nem do grosso das mensagens subliminares da comunicação social, e sendo a lei eleitoral o que é, o melhor caminho para quem tenha saudades do futuro é a reedição da PàF.
Não com Rio, que é um cadáver adiado; mas decerto com a Iniciativa Liberal, e talvez com a Aliança.
Anda por aí um movimento (o 5.7), que voluntariamente submergiu durante a campanha. Que reemerja, porque esse é o caminho.
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