Miguel Sousa Tavares, um conhecido comentador que tem por hábito asneirar com grande liberdade e franqueza, nisso se distinguindo dos seus colegas socialistas que costumam ser mais calculistas, disse na SicN que "quando a vontade do povo é qualquer coisa que vai contra aquilo que nós temos como o bem comum e as melhores ideias, não é preciso ceder à vontade do povo, é preciso resistir à vontade do povo”.
Isto eu ouvi e disse para os meus botões que aquele ilustre residente há décadas nos lugares cativos da opinião na falida comunicação social precisava que lhe cascassem - a gente de senso sujeita-se a opiniões de comunistas e às fracturas expostas dos adolescentes do Bloco e protege-se com o comando à distância, tirando-lhes o pio, mas ainda vai ouvindo socialistas para se inteirar dos novos asneiróis da governação. E vai ele e sai-se, a propósito de Trump, com uma destas - o presidente alaranjado tira pelo visto a esquerda, e muita direita, do sério.
José Mendonça da Cruz acertou-lhe o passo, tão completamente que partilhei o texto no facebook e, relendo-o, não tem lá nada com que não concorde.
Da esquerda estamos conversados, mas fiquei a pensar. Há demasiada gente à direita (e não, não estou a pensar no PSD, que contrasta com o PS sobretudo por gostar de contas equilibradas, nem no CDS, que contrasta com os dois sobretudo por achar que o bom cidadão vai à missa) que, ainda antes de Trump se estatelar, dar o dito por não dito, ou mudar de penteado, ou cancelar a conta de twitter, nem sequer lhe dá o benefício da dúvida, e pelo contrário exibe desde já um ódio furioso.
Não pode ser por causa do proteccionismo. Isso aflige talvez os chineses, os japoneses e todos os que tenham um superavit comercial, além dos liberais clássicos, que aliás entre nós não chegariam a encher o estádio do Dragão. Mas mesmo entre estes há vozes que lembram que os tratados comerciais longamente negociados têm três problemas: um é que ninguém, salvo os especialistas, os entende; o outro é que há suspeitas de que estão recheados de cláusulas que favorecem grandes empresas, e que foram lá plantadas por lobbies; e o terceiro é que a liberdade de comércio permitiu a saída da pobreza a uma quantidade de pessoas sem precedente (diga lá o papa Francisco o que disser, convencido que está de que calça realmente os sapatos do santo de Assis) - mas o emprego no Ocidente já não é para a vida, e enquanto dura é relativamente mal pago. Que interessam lá os chineses, ou vietnamitas, ou os pretos, que estão todos melhor? Nós temos menos esperança no futuro que os nossos pais, e isso não pode ser. Não, não é o proteccionismo que justifica tanta exaltação.
Não pode ser a NATO, que Trump parece não querer bancar, nem os gestos de compreensão em relação a Putin, que a União Europeia execra, nem o evidente descaso da própria ideia daquela União, nem o alinhamento com Israel, nem muito menos a adivinhada sobranceria na relação com a ONU. Os europeístas frenéticos (com perdão da redundância) veem nestas inflexões uma excelente desculpa para o reforço da integração, agora com uma componente militar, por causa do alegado expansionismo russo, e esfregam as mãos; a perspectiva do reforço da integração, mesmo para os que a não desejam, não explica a vasta coligação anti-Trump, nem a sua veemência; contra Israel está apenas a esquerda e uma faixa minúscula da direita; e a ONU não conta, salvo para Guterres, por lá estar a bolsar irrelevâncias, e o professor Adriano Moreira, por não falar doutra coisa.
E também não pode ser a evidente componente anti-islâmica do discurso trumpista porque a direita sabe que o Islão é uma ameaça, e não ignora que quando as comunidades muçulmanas atingem uma certa dimensão não apenas não se integram como rejeitam a tolerância, a igualdade entre os sexos e os outros valores que fazem com que no Ocidente se viva no séc. XXI e nos países islâmicos algures entre o VII e o XVIII. Que haja alguns ingénuos que, por causa da igualdade religiosa, não queiram ver as coisas assim, não monta.
Não pode também ser a posição de Trump sobre o waterboarding e o reforço dos poderes das polícias. As selvajarias americanas nunca incomodaram excessivamente as direitas no tempo de Bush, e de todo o modo não faltam, à direita, justiceiros acéfalos.
O quê, então?
Trump é, como o Brexit antes dele, o novo - o mundo velho está a ruir. Está a ruir com o regresso dos fantasmas dos nacionalismos, e dos equilíbrios geoestratégicos, e das alianças, e da importância da história - uma horrorosa complicação.
Sousa Tavares queria que a história acabasse, a União se aprofundasse, a ONU fosse mais respeitada, os muçulmanos se integrassem, os países fossem mais solidários, os cidadãos menos desiguais, os impostos mais baixos com um Estado Social mais amplo, e que as touradas continuassem, mas sem sofrimento do touro.
Queria isto. E a direita tradicional, com cambiantes, não queria a parte lírica disto, pelo que se definia, nessa parte, contra.
No nosso mundo antigo podíamos tranquilamente sonhar com uma sociedade nova, se fôssemos comunistas; ou em mudar de sexo a expensas do Estado, se fôssemos da esquerda festiva; ou em comprar eleitores com benesses, enquanto a economia crescia como por milagre, se fôssemos socialistas; ou em gerir com um módico de sensatez a coisa pública, se não fôssemos nenhuma daquelas abominações.
Quer dizer que nos entendíamos perfeitamente no rotativismo em torno do que está.
Mas o que está vai desaparecer. E podemos recuar assustadamente à procura da segurança do antes, a golpes de manifestações, artigos, desinformação, berreiro na comunicação social e ofensa dos eleitorados; ou agir sensatamente, tirando o melhor partido das circunstâncias.
Dito de outro modo: os velhos que o são, e os que só têm quarenta anos, mesmo que pareçam trinta, mas não estão a ver o filme, querem pôr um dedinho no furo da barragem, imaginando que por isso ela não vai abrir brechas. Já os velhos que o não são, mesmo que tenham sessenta anos e imaginem parecer ter apenas cinquenta, e os novos lúcidos, compreendem a futilidade do exercício.
Por natural modéstia, que espero se me desculpe, omito qual é destas a faixa etária a que pertenço.
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