O Dr. Rui Rio tem mantido algum recato desde a sua eleição para presidente do PSD, prudente e até recomendável a quem tem algum passado de ser encorajado e depois citado a fazer afirmações que, ou por excesso de espontaneidade, ou por falta de cuidado, nem sempre são fáceis de explicar politicamente como propostas de um partido de poder para resolver os problemas que comenta. Não tem caído nas armadilhas da espontaneidade que certamente lhe têm sido espalhadas pelos jornalistas. Tem estado bem.
Esta semana quebrou finalmente o silêncio para se pronunciar sobre um assunto da actualidade nacional e fazer a respectiva crítica.
E que assunto escolheu para inaugurar a sua voz como presidente eleito do PSD? O caminho de insustentabilidade que está a ser dado às finanças públicas por o governo estar a assumir compromissos de aumento da despesa estrutural, como aumentos salariais ou do quadro da função pública que nunca poderão ser revertidos, com base no aumento circunstancial da receita que o ciclo económico está a proporcionar agora, mas não proporcionará sempre? Não. Sobre a aparentemente intenção de demolição do Serviço Nacional de Saúde por desinvestimento, suborçamentação e calotes a fornecedores que começa a ter consequências gritantes na qualidade do serviço não prestado aos utentes? Não. Sobre o ataque sistemático do governo socialista a todas as entidades independentes através de guerrilha mediática contra os seus dirigentes e da sua substituição por socialistas, que recentemente foi reforçado pelo anúncio da intenção de substituir no final do mandato a Procuradora-Geral da República que investigou governantes e banqueiros como base no argumento, falso, que a lei só lhe permite cumprir um mandato? Também não. Nenhum destes assuntos graves ou mesmo gravíssimos lhe mereceu um comentário até agora.
O Dr. Rui Rio inaugurou a sua voz como presidente eleito do PSD pronunciando-se sobre a intenção da Google de fazer um investimento em Portugal em Oeiras, e criticando a decisão por ter optado por "Lisboa" para o fazer.
Independentemente de ser esperada ou não, esta escolha de tema está longe de ser inesperada, e mostra que o seu autor assume, como muitos outros políticos oriundos no Norte, genericamente, e do Porto, especificamente, o papel de provedor do Norte, ou do Porto, contra a macrocefalia de Lisboa.
Ao significado e implicações políticas já lá vamos, mas vou primeiro passar pelo bairrismo do Norte, ou do Porto.
Tendo raízes minhotas, e das que vão beber directamente às aguas do Rio Minho, o meu pai era de Melgaço e a minha mãe de Monção, e sendo lisboeta de nascimento e de toda a vida ter vivido à volta de Lisboa, tenho experiência de picardias de bairrismos regionais nos seus diversos ângulos suficiente para achar que valha a pena tomar partido, ou melindrar-me com elas, ou solidarizar-me com quem se melindra, e muito menos para as arbitrar, picardias de que posso dar um exemplo publicável com a piada "Sabes porque é que os lisboetas se chamam alfacinhas e não saladinhas? Porque não têm tomatinhos", e de que podia passar alguns anos a citar outras, quase todas com um sentido de humor e colorido de linguagem mais ricas do que esta. Não as coloco muito longe das picardias, a que autores muitas vezes também atribuem uma importância que escapa a quem lhes dá menos, sobre a bola.
Mas independentemente da virtude comparativa das picardias bairristas, há diferenças entre os bairrismos que uma observação objectiva me foi permitindo identificar ao longo da vida.
E uma delas é na intensidade. Passei muitos serões na juventude a ouvir enumerar, a minha pronúncia de alfacinha não enganava ninguém, sobrepunha-se sempre às raízes minhotas e despertava em várias pessoas a necessidade de as enumerar, vantagens do Porto sobre Lisboa. E nunca passei nenhum serão a procurar convencer quem quer que fosse de vantagens de Lisboa sobre o Porto. Talvez por não as haver, talvez por haver mas eu não estar devidamente preparado de argumentos para as enumerar, talvez por ser assunto que nunca me tinha preocupado nem me continuou a preocupar pela vida fora. Em todo o caso, mesmo descontando eventuais falhas na representatividade que eu, por um lado, e as pessoas que mas enumeravam, pelo outro, pudessemos ter relativamente às populações que representávamos, sempre me pareceu que era assunto que as gentes do Porto levavam mais a peito que as de Lisboa.
Outra é a identificação das populações com as lideranças. Não me lembro de um Presidente eleito da Câmara do Porto que não parecesse, pelo menos visto de longe, inamovível enquanto se continuasse a candidatar. Pelo menos desde que o Fernando Gomes lá chegou em 1989 que nenhum é deposto em eleições. O Fernando Gomes saiu por ter ido para o governo, o Nuno Cardoso perdeu as eleições mas nunca tinha chegado a ser eleito, o Rui Rio por ter atingido a limitação de mandatos, e o Rui Moreira no segundo mandato parece tão inamovível como os que o precederam nestas décadas. E para além dos resultados eleitorais é mesmo frequente assistir a testemunhos de cidadãos que confirmam uma grande identificação com o Presidente da Câmara e com o seu papel de defesa dos interesses do Porto, coisa que não acontece em Lisboa com a mesma intensidade, mesmo relativamente a autarcas que também ganham eleições.
Na campanha para as eleições internas do PSD foi bem visível esta identificação de cidadãos do Porto, nomeadamente a elite liberal e cosmopolita da cidade tão bem representada pelo presidente actual, com o seu ex-presidente, e terá sido mesmo determinante para definir o resultado das eleições, atendendo ao resultado esmagador que o candidato atingiu no Porto e distritos limítrofes, e no peso que esses distritos têm a nível nacional em número de militantes no partido.
Tudo junto, não é inesperado que os Presidentes da Câmara do Porto se afirmem pelo bairrismo especial da cidade e da região e que se assumam como campeões da defesa dos seus interesses contra o centralismo de Lisboa, o que é apreciado pelos munícipes que lhes retribuem em votos.
O que está é longe de se poder dar como provado que a afirmação de bairrismo traga vantagens aos políticos que se querem afirmar na política nacional ou, pelo contrário, expõe fragilidades ideológicas e políticas de quem a faz.
Ideológicas, porque a crítica se insere numa linha de pensamento que toma por bom que todas as decisões, mesmo as dos agentes económicos privados, são determinadas ou influenciadas pelo governo, de modo que de todas se podem assacar responsabilidades ao governo, sendo que a crítica foi implicitamente dirigida ao governo por ter levado o investimento da Google para Lisboa.
E uma das vertentes frequentes da afirmação do bairrismo do Norte é justamente o apelo ao governo para influenciar decisões de empresas privadas no sentido de respeitarem os interesses do Norte em vez de obedecerem aos do Sul ou se deixarem conduzir pela procura do lucro. Coisa que acontece recorrentemente por exemplo com a problemática das rotas da TAP. Ora esta é uma visão socializante da sociedade e da economia, que é legítima, mas faz duvidar do liberalismo e do cosmopolitismo de quem a tem. E até os socialistas a desmontam facilmente, neste caso específico esclarecendo que a Google não recebeu qualquer tipo de apoios ao investimento que colocasse o governo em posição de influenciar a decisão de localização. Terá sido uma decisão puramente empresarial, o mercado a funcionar.
Políticas, porque se a crítica pode ter consolidado a popularidade do presidente eleito do PSD entre o seu eleitorado regional, interno ao partido, que o elegeu e onde é preponderante, mas também externo, onde está longe de ter a proponderância que tem no universo partidário, também pode ter suscitado dúvidas no eleitorado de outras regiões, que é mais preponderante a nível eleitoral do que no universo de militantes do partido, e onde a crítica parece mais própria de um líder regional do que de um que se quer nacional.
Aliás, nem sequer é difícil a um governo suficientemente demagógico combater politicamente líderes regionais nas suas causas bairristas. Basta-lhe afirmar de modo credível intenções, mesmo que não tenha a intenção de as levar a cabo e espere que as circunstâncias acabem por impossibilitá-las contra os seus esforços aparentes. Basta-lhe anunciar a mudança para o Porto da sede de um instituto público. Mesmo que o instituto acabe por não mudar, a boa intenção fica para a história e bem esticada chega até às próximas eleições.
Posto isto tudo, não me parece que tenha sido uma boa ideia o Dr. Rui Rio ter inaugurado a palavra como presidente eleito com uma crítica bairrista.
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