Domingo, 6 de Maio de 2018

O cartaz

Irene-02.jpg

 

O cartaz criou uma tal comoção que durante quase dois dias milhares de pessoas o viram nas redes sociais; nas caixas de comentários dos jornais que o reproduziram uma quantidade de leitores insultou a moça com excesso de maiúsculas, pontos de exclamação e vernáculo, e défice de gramática, enquanto outros a defendiam com arreganho e as mesmas armas; e, consagração suprema, Pacheco Pereira requisitou a papeleta para a acrescentar, supõe-se que em lugar de destaque, ao depósito onde mistura algumas coisas úteis com quantidades prodigiosas de lixo, na biblioteca de Alexandria das irrelevâncias que designa como Ephemera.

 

Os dizeres, que mereceriam ser vertidos em bronze numa qualquer escultura pós-moderna instalada numa rotunda de um concelho progressista, eram os seguintes: “Farta até a cona de gerar a mais-valia dos homens. Trabalho reprodutivo sustenta o capital.”

 

Isto é forte, mas infelizmente não se percebe: até à cona porquê? Não deveria ser até à ponta dos cabelos, como está consagrado para significar que se quer ir de um extremo a outro? Porquê parar a meio, como se estivesse com as pernas fresquíssimas mas a cabeça, o tronco e os braços moídos, ou estes em estado de grande vigor mas as pernas num molho?

 

Leitores incautos como eu imaginaram que a azougada e simpática gorduchinha estivesse a falar de prostituição, e a identificasse com a mais-valia da satisfação sexual egoísta dos homens, aparecendo a reprodução e o capital no texto porque realmente não se pode negar que as putas não trabalham de graça, nem que, sem conas, não há partos e por conseguinte reprodução.

 

Raciocínio retorcido e altamente insatisfatório, decerto. Mas, que diabo, são vinte e dois aninhos de idade, é a geração mais bem formada de sempre, e no contexto do 1º de Maio e daquela boa gente festiva e demente do Bloco, querer senso e ideias escorreitas seria uma exigência despropositada.

 

Engano meu. Que, tropeçando por acaso nesta entrevista, fiquei a saber que as amigas da rapariga, que é espanhola, a ajudaram a traduzir os dizeres; que, ignorantezinhas como são, imaginaram que nestas praias onde a modernidade chega com atraso toda a gente soubesse que trabalho reprodutivo significa, no dialecto da seita, maternidade; e que há mercado para a ideia de que deve haver um salário para a reprodução biológica, mas também outras actividades como “cuidar das crianças, de quem está doente, limpar, lavar, cozinhar”. “Tudo isso é trabalho necessário para que sejamos indivíduos produtivos social e economicamente”. É por isso, conclui a activista, que este tipo de encargos “sustenta o capital”.

 

Temos então que os capitalistas, investindo, criam riqueza apenas para si, donde a sua existência é meramente parasitária; que os maridos, ou pais, não contribuem suficientemente para a educação e sustento da prole, mesmo que sejam trabalhadores por conta de outrem, razão pela qual se têm de ir buscar recursos a outro lado, e esse é o do capital; e que os capitalistas, a somar às suas outras perversões, têm a de esperar pela calada e traiçoeiramente que as mulheres tenham filhos com o inconfessado propósito de, logo que bem nutridos e tratados, os explorarem impiedosamente.

 

Donde virá o salário que as mulheres com filhos devem auferir Irene não diz, e o jornalista esqueceu-se de esclarecer esse detalhe, assim como ficamos sem saber qual o montante justo de semelhante retribuição, se será proporcional ao número de filhos, se não haverá diferenciação consoante a qualidade reprodutiva das futuras mães, e outros pormenores do maior relevo. Mas o assunto haverá de entrar na ordem do dia, visto que há em Lisboa uma organização, a Assembleia Feminista daquela localidade, que se encarrega de promover esta e outras causas femininas e sociais; assim como existe inclusive um organismo europeu, o Instituto Europeu para a Igualdade de Género (EIGE) que esclarece as massas sobre o que se deve entender por trabalho reprodutivo.

 

Sempre a aprender. Se bem que a activista Irene diga que “isso a que chamam amor é trabalho não pago”. Julgava, ingenuamente, que trabalho de amor pago era o das, com licença, putas.

 

E só não me junto ao coro dos indignados que assim a trataram porque não tive, mas podia ter tido, uma filha assim voluntariosa, gordinha, blocazinha e patetinha. E, se a tivesse tido, veria estes dislates com a mesma ternura que suponho aos pais dos moços do Maio de 68, que se anda a celebrar: não lhes cortaram a mesada; sorriram às proclamações, aos desacatos, aos paralelepípedos levantados das ruas, e às abundantes libações. Sabendo que, um mês volvido, tudo ficaria na mesma, logo que os calceteiros consertassem os pavimentos e os lixeiros removessem as garrafas vazias.

publicado por José Meireles Graça às 17:51
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5 comentários:
De gato a 11 de Maio de 2018 às 16:35
Muito boa e hilariante prosa. Vexa, desta vez, foi simples e directo. Felicito-o
De José Meireles Graça a 11 de Maio de 2018 às 17:06
Obrigado.

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