Foi bom o discurso de Marcelo: nele não figuravam recados, não lançava farpas (senão a referência à “mão invisível”, possivelmente uma velada crítica ao suposto liberalismo da defunta coligação, pecha da qual a pobre nunca sofreu), não apontava o dedo, não continha frases jesuíticas (como os de Eanes, para simular a profundidade que não tinha), não atacava enviesadamente os partidos que não o apoiaram (como Soares, Sampaio e Cavaco fizeram), não foi revanchista (como Cavaco, no segundo discurso de tomada de posse), não estava redigido no abominável economês cheio de lugares-comuns com que Cavaco entediava a Nação, nem no palavreado supostamente culto e progressista com que Sampaio se imaginava líder de causas, nem na prosa chula de Soares, cultivando cuidadosamente a função de contrapoder, ao serviço dos verdadeiros valores de Abril dos quais cria ser fiel depositário.
Se quisesse escabichar defeitos, a expressão "... para cada Portuguesa e para cada Português que vai o meu primeiro e decisivo pensamento..." concede demais ao politicamente correcto da igualdade entre os sexos; e um "arquipélago com três vértices – Continente, Açores e Madeira" não parece uma imagem excessivamente feliz - os arquipélagos têm uma tendência muito marcada para terem vértices apenas na pintura cubista.
Mas, depois de Cavaco, qualquer texto parece saído da pena inspirada do Padre António Vieira; e o inegável à-vontade de Marcelo a navegar com mestria no mar das cerimónias públicas terá por certo agradado à legião imensa, e para já crescente, dos seus eleitores.
A única nota negativa deram-na o PCP e o BE, ao não se levantarem para aplaudir o discurso. E as opiniões divergem: uns dizem que o fizeram para aproveitar qualquer pretexto que não tenha consequências para marcarem diferenças em relação ao PS; e outros que aquela gente não tem sentido das proporções, nem respeito pelos rituais da democracia, nem simples boa educação - sou um dos que isto acha.
Rebrilhando de gordura e satisfação, o PM Costa declarou (cito de memória) que foi um discurso em que todos os portugueses se podem rever.
Pois foi - como deve ser o discurso de um rei constitucional.
Sucede todavia que a recente campanha foi para eleições presidenciais, não para um referendo à restauração da monarquia.
O Presidente da República tem competências políticas que excedem em muito as de um rei constitucional, e será chamado a exercê-las. Ao fazê-lo, não pode agradar a todos os portugueses, porque estes, em todas as matérias de relevo, têm o hábito detestável de terem opiniões várias, e até opostas. Na campanha, Marcelo disse que sim, não, e antes pelo contrário - disse, em resumo, não me comprometam, e com isso ganhou.
Ganhou para fazer o quê? Não sabemos.
Por mim, que não sou deputado, e não estou portanto em circunstâncias de ter que fazer o que a boa educação manda, guardo o meu aplauso para quando o Presidente o mereça. Suspeito que vai ganhar bolor.
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