Somos legião os que nos habituámos há décadas a contar com Vasco Pulido Valente para, por trás das personagens da política, da literatura, das artes e do entretenimento, perceber o significado oculto dos incidentes que fazem a história dos nossos dias, e entender quem são realmente eles, o que querem, o que deveriam querer, qual o significado do que dizem e fazem, e de que forma se encaixam numa tradição histórica que lhes ilumina as acções.
Mais nenhum comentador faz isto. E mais nenhum ainda o consegue com uma escrita elegante, com frequência ácida, onde a mestria do português se combina com a capacidade rara de dizer muito com pouco - precisamente o oposto do que fazem quase todos os que entendem confiar aos meios de comunicação social o que lhes vai na alma, para edificação dos leitores.
E são legião também, e sempre foram, os que não lhe perdoam não fazer parte da escola do respeitinho, do Portugal torrãozinho de açúcar, patriotaça, patrioteiro e patriotarreca; além da corte dos que se movem na esfera do Poder, da influência, da dependência dos poderes de facto, adeptos quase todos da confraria do elogio mútuo.
Vasco Pulido Valente não é desses; e imagino que por isso pague um pesado preço: Portugal resume-se, para estes efeitos, a Lisboa, que é uma paróquia em que toda a gente conhece toda a gente. Ser independente neste meio, e usar da liberdade de escavacar toda a vaidade irritada e irritante, todo o bonzo cultural, todo o medíocre alçado a pensador, todo o carreirista transmutado em estadista, e todo o medíocre hábil, tem de ter um preço. E este, na sua declinação menor, é volta e meia ver zurrar na praça pública alguma excelência que se imagina ofendida.
Pois VPV, que estava desaparecido, para alívio dos poderes do dia, que calha serem os dos socialistas do nosso descontentamento agora, e da nossa desgraça a prazo, reemergiu no Observador. E - ó imprudência - em meia dúzia de linhas reduziu o santo civil Guterres à sua dimensão de pequeno político beato e pusilânime.
As reacções não se fizeram esperar, inconscientes embora os seus autores da homenagem involuntária que faziam a quem com poucas linhas demolia o ídolo que o PS oferecia à adoração das massas, e propiciava os panegíricos delirantes com que a classe política inteira, incluindo o presidente da República, se uniu na comunhão do asneirol louvaminheiro.
Um desses que tomou as dores do patriotismo ofendido foi o embaixador Seixas da Costa, num texto espumando inveja e ressentimento, que resume a vulgata do que se aponta a VPV: este não é capaz de vislumbrar a grandeza de alguns dos seus concidadãos, por se inserir numa tradição de escárnio e maldizer que tem sucesso junto dos invejosos. Ao embaixador (embaixadorzinho de merda lhe chamou um cidadão brasileiro, com aquele jeito que têm os brasileiros para encontrar fórmulas definitivas e pertinentes para classificar pessoas) não ocorreu que se Portugal estivesse tão bem servido de personalidades que merecem o respeito e a gratidão da grei não seria o país meio-falhado que é hoje; e que de graxistas, tachistas e carreiristas há enorme abundância - gente com coluna vertebral é que não.
No mesmo texto também sobrou alguma lama para outras duas pessoas, uma que já se deu ao trabalho de lhe responder e outra que ignoro (mas gostaria) se o fará. De Vasco Pulido Valente é que não podemos esperar nada, que este tem por hábito antigo ignorar a canzoada que lhe ladra aos calcanhares. Teria muito que fazer, e se enveredasse por esse caminho iria tropeçar em gente que deve ter, mas não confessa, razões pessoais para, em calhando e no meio de multidões, juntar o seu latido aos demais. É o caso de José Ribeiro e Castro, que se aliviou de uma prosa inqualificável em comentário ao post feicebuquiano do embaixador, que não rebato por não se rebater esterco.
Para a semana, esperamos, haverá mais. E haverá também, é de crer, gente de representação que com virtude virá ao proscénio defender o Portugal que está. Quem nasceu na merda, vive na merda, e singrou na merda, não lhe apercebe o cheiro. Felizmente ainda há quem tenha olfacto.
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