Por razões que não vêm ao caso, tivemos cá em casa necessidade de recorrer a um tratamento continuado que não era comparticipado, nem pelo seguro de saúde que nos abrangia a todos, nem pela ADSE que abrangia alguns de nós, mas era pelo Serviço Nacional de Saúde, e tivemos que nos tornar, e fomos durante alguns anos, utentes regulares do Centro de Saúde da Reboleira.
O centro de saúde funcionava num prédio de apartamentos de dois andares sem elevador onde tinham retirado as portas de entrada das fracções, a recepção era no R/C, as vacinas e alguns gabinetes no primeiro andar, e o resto dos gabinetes no segundo, e eramos suficientemente jovens para, mesmo quando íamos de carrinho de bebé, subirmos e descermos as escadas com garbo e elegância. Ainda somos.
E tínhamos médico de família.
Para quem não é utente, o médico de família é o passaporte para um utente poder marcar consultas e ter uma probabilidade razoável de ser consultado na data e hora marcada. Não ter condena-o a não poder marcar consultas a não ser de urgência, daquelas para que os utentes formam fila à porta do Centro de Saúde a partir da hora que entenderem, para às oito da manhã o segurança abrir a porta e distribuir aos primeiros da fila um número de senhas igual ao número de consultas de urgência disponíveis para esse dia, e aos outros dizer-lhes que já acabaram as senhas e que podem voltar a tentar a sorte no dia seguinte, talvez chegando mais cedo, concedendo aos detentores de senha o direito de esperarem pelas nove horas, quando abre o expediente, serem atendidos a partir daí pela ordem das senhas, e marcarem a hora da consulta de urgência para o próprio dia, podendo então voltar a casa para regressarem à hora marcada para a consulta. Parece complicado? É complicado, mas apenas para quem necessita, quem tem alternativas safa-se no privado sem estas desventuras.
Tínhamos mas, já não me consigo lembrar se por gravidez, se por passagem à reforma, se por transferência para outros emprego, deixámos de ter, e passámos à condição de utente sem médico de família atribuído, ou seja, f. Apenas os que necessitam, como já expliquei acima. Os pobres. E os remediados que precisavam das guias para o tal tratamento que não era comparticipado pelo seguro de saúde nem pela ADSE, lembram-se? lembro-me eu. Isto quando ainda nos governava o actual Secretário-Geral da ONU, de sua graça António Guterres, ainda no milénio passado.
E pronto, enquanto a necessidade durou lá nos adaptámos, porque tivémos que adaptar, a este procedimento, que também tem uma curva de aprendizagem em que os utentes vão gradualmente aprendendo alguns caminhos de pedras que lhes permitem chegar ao destino minorando parcialmente os incómodos. Conseguimos sobreviver.
Até que o Ministério da Saúde encerrou o Centro da Saúde da Reboleira e transferiu administrativamente os Utentes, entre os quais o meu agregado familiar, para o Centro de Saúde da Amadora. Ainda mais longe de ter médico de família atribuído do que antes, está de ver. E, com a transferência, a curva de aprendizagem voltou à estaca zero e o processo descrito antes, das filas formadas a partir da madrugada para conseguir obter a ambicionada senha que dá direito a marcar a ambicionada consulta, ou "tenha lá paciência e volte amanhã, pode ser que tenha mais sorte", voltou a vigorar. Mas a necessidade que fazia de nós utentes forçados do SNS também se foi desvanecendo com o tempo, e os nosso incómodos como utentes do SNS também.
Mesmo assim, quando era necessário, e passou a sê-lo quando os funcionários públicos, um dos quais faz parte do meu agregado familiar, deixaram de poder meter baixa com um atestado passado por qualquer médico e passaram a necessitar de um atestado passado por um médico de um centro de saúde, a cena de ir para a fila de madrugada era incontornável.
Até que chegou o governo do Pedro Passos Coelho e, com ele, a austeridade. A coisa só podia piorar.
Mas, surpresa! um dia, lá para entre 2012 e 2013, recebemos uma carta a explicar que tinhamos sido colocados como utentes na Unidade de Saúde Familiar Alma Mater, uma espécie de extensão, a poucos metros de distância, do Centro de Saúde da Amadora, e que nos tinha sido atribuído médico de família. Foi um dia de grande felicidade, é bem capaz de ter havido lágrimas a rolar pelas nossas faces. Não tinhamos médico de família desde o tempo do Guterres e eatávamos a voltar a tê-lo em plena austeridade neoliberal.
Nunca consegui perceber a verdadeira razão desta reviravolta. Provavelmente o governo Passos - Portas atribuiu-nos um médico de família apenas para nos distrair das velhacarias que andava a fazer para demolir o SNS a mando da troika, dos mercados de capitais e da senhora Merkel? Talvez... Mas a verdade é que nos adaptámos muito bem a este logro demagógico. Passámos a poder marcar consultas para quando nos fosse conveniente e a, em caso de necessidade, dar lá um pulinho a meio da manhã para marcar uma consulta de urgência que, tipicamente, conseguíamos que fosse perto da hora de almoço. Para nos enganar ainda mais, as funcionárias do atendimento são solícitas, simpáticas e com a melhor eficácia que se pode esperar de quem se move dentro do sistema da burocracia pública. A troika esmagou-nos com mimos.
Até que o Passos Coelho se foi embora e, com ele, a austeridade. A coisa só podia melhorar.
E melhorou. Aqui recuado, por me ter lembrado que tinha feito 60 anos, foi procurar na internet até quando devia renovar a carta de condução, descansado com a ilusão que deveria ter que ser até ao dia 31 de Dezembro, e descobri que a devia ter renovado até ao dia do meu aniversário, que já tinha sido há alguns meses. Andava com uma Carta de Condução caducada, falha mais grave do que ter um aquário clandestino em casa ou um isqueiro sem licença. E como da renovação da carta aos 60 anos faz parte a necessidade de um atestado médico, lá fui eu ao centro de saúde esperando ter um serviço de lorde e ver o meu problema resolvido sem demoras.
Basicamente foi, como já dei conta aqui. Do que não dei na altura, porque cuidei que era um detalhe sem importância para explicar o que tinha a explicar, é que a minha médica de família estava de licença por motivo que não vem ao caso, a médica que me consultou estava a fazer o internato da especialidade e, apesar de não me ter dado sinais de achar o meu estado de saúde preocupante tendo em conta os meus 60 anos, aproveitou a oportunidade para me receitar todos os exames e análises de que se lembrou que podiam ser úteis para avaliar o estado de saúde de um velho como eu. Também não vos disse, mas digo agora, porque é relevante para o que vos estou a revelar a seguir, a consulta foi no dia 31 de Agosto de 2017.
As análises fi-las logo no dia 1 de Setembro, no laboratório ali perto onde, no próprio dia da consulta, tinha passado e me tinha munido de todo o equipamento necessário para fazer as respectivas colheitas em casa. Mais três ou quatro dias para me darem os resultados e estaria pronto para voltar a mostrá-los à simpática e prudente médica que mos tinha receitado. Quase, porque também tinha que fazer uma ecografia, e essa não a consegui marcar para aqueles dias. E como a curiosidade era mais dela do que minha não passei à frente da fila fazendo a ecografia com urgência e a minhas expensas num estabelecimento privado, e decidi fazê-la num estabelecimento com acordo com o SNS, e ao custo da respectiva taxa moderadora. Consegui uma marcação para o dia 6 de Dezembro.
Nesse dia mesmo, saído do hospital onde tinha acabado de fazer a ecografia, voltei ao centro de saúde para marcar uma consulta e finalmente lhe mostrar à jovem médica os resultados das análises e exames que me tinha recomendado. Uma breve consulta da recepcionista no computador e informou-me que me conseguia arranjar consulta para a minha médica de família, entretanto regressada ao activo, para o dia 23 de Fevereiro de 2018. E eu disse "está bem".
Só que não está bem, está mal.
Se em vez de ser um jovem que fez as análises e exames, mais por cavalheirismo com a médica que se deu ao trabalho de os receitar numa consulta que tinha uma finalidade meramente administrativa e não tinha origem em problemas de saúde do utente, do que por necessidade, eu fosse um velho de 60 anos aflito disto e daquilo a ir ao centro de saúde para procurar alívio ou tratamento para as minhas aflições, entre a primeira consulta em que a médica receitou os exames e análises, e a próxima consulta em que vai olhar para os resultados vão-se passar 6 meses.
A mim não me custam nada a passar, que vou lá mais por deferência com quem teve o cuidado de se assegurar através dos meios de diagnóstico disponíveis que o meu estado de saúde estava tão bem como a mim me parecia e lhe dera conta. Mas a um utente que estivesse mesmo doente, e desde o dia 31 de Outubro de 2017 já vi morrer amigos com idades não muito diferentes da minha, podem significar a diferença entre um diagnóstico e tratamento atempados e com boa probabilidade de serem eficazes e o agravamento da doença ou mesmo a morte.
[E nem vou, para não correr o risco de me darem arritmias ou crises de maus fígados, relembrar aqui casos como o do meu amigo de 63 anos que tinha Parkinson e foi internado num hospital do SNS com problemas na coluna devido a uma queda e saiu de lá morto por uma pneumonia derivada de uma infecção hospitalar, ou do pai de outro amigo que também foi internado devido a uma pequena queda e também morreu de pneumonia devida a outra infecção hospitalar, ou das vítimas da doença do legionário que apanharam noutro hospital do SNS onde tinham ido por problemas menores e até, parece, administrativos, mas não tinham o sistema imunitário suficientemente forte para resistirem às infecções que circulam livremente dentro dos hospitais.]
O Serviço Nacional de Saúde é bom para quem não precisa dele. Mas para as pessoas doentes e velhas é um perigo.
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