Quem ler alguma da história do Estado Novo percebe que este, nascido de um golpe militar, só pôde consolidar-se porque Salazar contou de início com o apoio das chefias, assustadas com o descalabro financeiro da pátria falida, em particular Carmona, e com a desordem e o terror da 1ª República, e foi com o tempo criando a teia de dependências e cumplicidades que transformaram a instituição militar num dos pilares do regime.
A guerra colonial veio desfazer este suave arranjo. Não é que a situação fosse militarmente insustentável; não é que o país estivesse exangue com o esforço da guerra, como diz a lenda, não obstante os mais de 40% do Orçamento que a ela chegaram a ser afectos: é que um pequeno país não podia pedir indefinidamente aos seus juvenis, em levas sucessivas, que fossem para longe defender algo que muitos não entendiam como seu, e tudo sem fim à vista. Além do que os ventos de uma opinião pública mundial hostil ao colonialismo à antiga também aqui chegavam, ainda que filtrados. E mesmo que por baixo da mesa os governos do Ocidente nem sempre fossem tão hostis como gostavam de se apresentar; e mesmo que no contexto da Guerra Fria não se ignorasse que havia o perigo de a URSS ser o verdadeiro herdeiro das independências das antigas colónias: havia o cansaço de um regime decrépito, a falta de esperança e a sensação de cuspir contra os ventos da História.
Um problema de promoções e de estatutos foi o rastilho; uns poucos militares mais lidos ou ambiciosos foram o fermento; outros mais atrevidos, corajosos ou inconscientes, os agentes; o regime caíu, sem que quase ninguém, salvo os futuros retornados, o lamentasse; e os heróis do dia foram ler - para desempenharem o seu novo papel não podiam falar da pele posta a salvo, do pré e das carreiras, precisavam do manto salvífico de uma ideologia. De ideologias havia várias disponíveis, e todas eles tresleram, mas a que parecia a muitos reservar um papel exaltante era a comunista, numa das variantes que os ideólogos civis disponibilizavam. Daí para a frente, estabeleceu-se, na rua e nos quartéis, a luta entre soviéticos, ou cubanos, ou peruanos, ou albaneses, ou chineses, de um lado, e suecos, ou franceses, ou americanos, ou ingleses, do outro.
A facção militar pró-Ocidente ganhou e, em devido tempo, com a preciosa ajuda de Eanes, os militares regressaram aos quartéis, de onde saem esporadicamente quando, como agora, a Pátria se lembra de os tratar com os rigores que reserva, sob a férula da tróica, a outras categorias de cidadãos.
Os heróis, porém, não regressaram completamente ao anonimato dos quartéis - quem esteve tanto tempo debaixo das luzes suporta mal a insignificância. E como para a luta política se requer bastante mais do que competência nas artes do putsch; como a legitimidade revolucionária se esfumou no tempo; como na democracia as usual não há lugar para fardas nem proclamações pretorianas; como o 25 de Abril é mais um feriado para ir à praia, e menos uma data para exaltações em torno de valores que, por estarem adquiridos, não precisam de ser repetidos pela milésima vez: não está a maioria do Parlamento para aturar um grupo de ressentidos que, tendo ajudado in illo tempore a instalar uma democracia vulgar, querem agora promover uma democracia sui generis, que seria aquela em que a Oposição fala a duas vozes: a dela, que foi eleita, e a dos convidados que acham que não precisam de o ter sido.
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